24/06/2020
Fonte: Agência Estadão | Coluna Broadcast
*Márcio Holland
Mal controlamos a pandemia da covid-19 e políticos, autoridades econômicas e especialistas voltam a
discutir a reforma tributária. Recomeça-se o tema de onde parou, ou seja, as PEC 45/2019 e 110/2019, em
tramitação no Congresso Nacional. O argumento é de que, agora, mais do que nunca, o Brasil precisa
reformar seu caótico sistema tributário. Igualmente importante, tem-se o argumento de que é preciso
começar reformando a tributação sobre o consumo. Depois, ou por outros meios legais, pensa-se na
tributação sobre a renda, o patrimônio e a folha de salários.
Nada mais antigo do que os princípios ideais de um sistema tributário. O tema nos remete a Adam Smith,
em sua obra marcante "Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações", de 1776. Para
o pai da economia moderna, cada indivíduo de uma dada nação deve contribuir para ajudar o governo o
quanto possível na proporção de sua capacidade de suportar o tributo ("ability-to-pay"). É de Smith
também a regra de que o tributo deve ser o mais previsível possível, evitando arbitrariedades, com prazos
para pagamentos e formas de apuração.
Desde então, a literatura de tributação tratou de elencar os princípios da boa tributação. São eles: 1) fácil de
arrecadar; 2) fácil de avaliar a conformidade; 3) flexibilidade, de modo a permitir que a política tributária
atue na estabilização macroeconômica; 4) promoção da eficiência econômica, minimizando distorções da
alocação dos fatores de produção; e 5) que se promova a equidade.
Para se lograr obter equilíbrio entre esses pilares da tributação, os governos podem ordenar a tributação
sobre consumo, renda de famílias e de empresas, patrimônio, e um conhecido "excise tax". Esse último é
uma espécie de tributo específico usualmente aplicado na produção de fumo, bebidas alcoólicas e de
combustíveis fósseis.
Ao longo do século passado, países com a Dinamarca (1967), França e Alemanha (ambos em 1968) foram
pioneiros em adotar um modelo de IVA (imposto sobre o valor adicionado) na tributação sobre o consumo.
O Brasil seguia essa tendência e, na reforma tributária de 1966, ousou em substituir um sistema cumulativo
pelo critério de valor adicionado tanto no IPI quanto no então ICM, conforme a Emenda Constitucional n.
18, de 1º de dezembro de 1965, e sua regulamentação na Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, o nosso
Código Tributário Nacional.
Sobre o IPI, já se previa naquela lei que ele seria seletivo em função da essencialidade dos produtos (Art.
48) e não-cumulativo (Art. 49). Coube ao Decreto-Lei no. 406, de 31 de dezembro de 1968, regulamentar o
ICM (atualmente, ICMS). Salta aos olhos o seguinte texto da Lei, em seu Art. 3º: "O imposto sobre
circulação de mercadorias é não cumulativo, abatendo-se, em cada operação o montante cobrado nas
anteriores, pelo mesmo ou outro Estado". Igualmente importante, foi cunhado em ato constitucional, conforme o Art. 12º. da EC 18/1965, a ideia de que sua alíquota fosse uniforme para todas as mercadorias.
Ou seja, tão antigo e tão moderno quanto a banda de rock inglesa The Beatles, a tributação no Brasil já foi
tratada em ato constitucional e devidamente regulamentada sob a égide do valor adicionado, conforme o
que conhecemos como um "bom" IVA. Conseguimos, com o passar do tempo, produzir normas tributárias
suficientes para distorcer a Carta Magna. Por que, então, desta vez, uma nova emenda constitucional
rezando sobre o tema teria poder de fogo?
Outra tese que ganhou peso recentemente no Brasil é a de que o sistema tributário atual provoca má
alocação dos fatores de produção. Seus signatários se associam a uma crescente literatura internacional que
relaciona "misallocation" (má alocação de fatores de produção) e problemas de crescimento econômico.
Outra tese que ganhou peso recentemente no Brasil é a de que o sistema tributário atual provoca má
alocação dos fatores de produção. Seus signatários se associam a uma crescente literatura internacional que
relaciona "misallocation" (má alocação de fatores de produção) e problemas de crescimento econômico.
Ou seja, devido ao caótico sistema tributário brasileiro, baseado em guerra fiscal estadual e regimes
tributários especiais, capital e trabalho se deslocam para regiões sem vantagens comparativas naturais,
provocando aumento de preços dos fatores de produção e, assim, dos bens e serviços. Isso implicaria em
redução da eficiência econômica e, com isso, da produtividade do trabalho no interior da economia. A.
Banerjee e E. Duflo (2005), em seu texto "Growth Theory through the Lens of Development Economics",
publicado no Handbook of Economic Growth, por exemplo, acreditam que essa má alocação de fatores
explica grande parte da diferença de renda per capita entre países ricos e pobres.
Não deve pairar dúvidas de que o sistema tributário brasileiro provoca ineficiências econômicas e isso, por
conseguinte, agrava nosso problema do baixo crescimento da produtividade do trabalho, afetando, assim, o
crescimento potencial de longo prazo. Mas, não se pode concluir que esse problema se deve apenas por
causa da tributação; seria reducionismo. É também reducionismo acreditar que uma emenda constitucional
instituindo (ou reintroduzindo) o critério de valor adicionado na tributação sobre o consumo, como previsto
na PEC 45/2019, é suficiente para destravar os nós da misallocation.
É preciso cuidados com o que prometemos para a nossa sociedade. Não há dúvidas de que temos de
endereçar medidas que busquem reduzir inseguranças que pairam sobre o sistema tributário atual e reduzir
a guerra fiscal. Mas, o ato de criar um imposto, o IBS (imposto sobre bens e serviços), em substituição, ao
longo de uma fase de transição, a alguns tributos atuais, não garante que, ao longo do tempo, novas normas
e regulamentações não distorçam a boa fé da emenda constitucional.
É preciso supor que a emenda constitucional funciona com uma varinha mágica e mude o comportamento
de todos os setores da sociedade rumo a um bem comum e que, por causa disso, todos os investimentos em
curso, espraiados por todo o País, se realoquem automaticamente rumo a um equilíbrio fantástico onde
vigora a alocação eficiente dos fatores. Não haveria, neste mundo mágico, mercados imperfeitos e
incompletos. Todos os atos normativos publicados a partir da emenda constitucional estariam
absolutamente alinhados ao princípio da busca pela alocação eficiente dos fatores de produção (capital e
trabalho) em todo o território nacional.
Essa tese precisa dialogar com as desigualdades sociais, de renda e regionais. Seria irrealista assumir que
somos todos iguais! O argumento que aparece usual é o de que não se faz "política tributária" para
distribuir a renda, nem para promover desenvolvimento regional.
Contudo, o problema de misallocation não se resolveria apenas consertando a tributação sobre o consumo,
visto que as tributações sobre a folha de salários e sobre a renda das empresas também estão distorcidas.
Essas também são tributações que precisam ser reformadas para o bem da alocação eficiente dos fatores. A
tese de que a PEC 45/2019 resolve o problema da má alocação dos fatores vê-se, mais uma vez, refutada
por esse fato. Por que apenas a tributação sobre o consumo provoca má alocação?
Finalmente, algo que nos intriga é a determinação em resolver o problema de misallocation, via tributação sobre consumo - algo que se provou aqui limitado - forçando as regiões brasileiras a seguirem suas
vantagens comparativas naturais. Essa é outra tese tão antiga quanto as contribuições de David Ricardo, em
seus "Princípios de Economia Política e Tributação", de 1817. Quem não se lembra da elaboração de
Ricardo sobre se Portugal deveria mesmo produzir tecidos, além de vinhos, ou apenas vinhos, dadas as suas
aptidões naturais, deixando para a Inglaterra a produção de tecidos?
Mas, por que o Estado brasileiro não pode promover atividades produtivas sofisticadas no Norte, Nordeste
ou Centro-Oeste do País? Por que não se reserva um tributo, como o IPI, para a promoção de políticas de
desenvolvimento regional? Deveriam os Estados do Norte se guiarem pelas suas aptidões naturais e
estimular o extrativismo, desmatando e extraindo as extraordinárias riquezas naturais da Floresta
Amazônica? Os ganhos econômicos com atividades de maior valor adicionado, que acabam promovem a
educação, desenvolvimento de P&D, emprego de qualidade, rendimento maior do trabalho, acesso a
serviços de saneamento básico e moradia, em regiões mais remotas, não compensariam (ou mais do que
compensariam) eventual misallocation?
Por tudo isso, me parece bem claro que não temos uma solução fácil e simples para corrigir o sistema
tributário atual. E isso não coloca o Brasil na exceção da regra. O mundo debate o tema. Poucos países têm
em vigor atualmente um "bom" IVA; os demais, usualmente economias de renda per capita alta, tem
elevada tributação sobre a renda pessoal e sobre o patrimônio, e tributam menos a renda de negócios e o
consumo.
A reforma tributária é condição necessária, mas está muito distante de ser a condição suficiente para o
crescimento econômico sem misallocation. Pode, inclusive, agravar problemas de regressividade e acelerar
concentrações produtivas em certas regiões e, de sobra, agravar problemas de previsibilidade para os
investimentos, se não bem conduzida de olho nos princípios básicos de boa tributação.
(*) Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde Coordena o Programa de Pós-Graduação (lato sensu) em Finanças e Economia e escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente, às quartas-feiras.