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REFORMA TRIBUTÁRIA E DESIGUALDADE

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30/09/2020

Por Márcio Holland*

A tributação é um dos campos da economia de maior elegância no debate da teoria. Mas, provavelmente o de maior discórdia no mundo da realidade. Pelo menos desde Ramsey (1927), um misto de matemático com filósofo e economista britânico, de vida curta e de contribuição marcante no campo das finanças públicas, que se fala na simples e potente teoria tributária ótima.

Afinal, como maximizar o bem-estar dos indivíduos através da tributação? James Mirrlees, em conjunto com William Vickrey, com quem também compartilhou o Nobel de Economia de 1996, defende a ideia da justiça tributária por meio da progressividade na tributação sobre a renda sem perder de vista os incentivos para quem tem habilidades para auferir maiores salários. A teoria de tributação contou ainda com outros pesos pesados laureados com Nobel de Economia, como Peter Diamond (Nobel em 2010) e Joseph Stiglitz (Nobel em 2001).

Distante deste elegante mundo acadêmico da teoria da tributação ótima e suas variantes, aqui abaixo da Linha do Equador, estamos quebrando cabeça sobre se vamos tratar os desiguais desigualmente ou se devemos seguir tratando os desiguais igualmente. Essa discussão está revelada nos debates em torno das propostas de reforma tributária, em discussão na Comissão Mista.

No front da justiça tributária, a discórdia está em como restituir os tributos pagos pelas famílias mais pobres em suas aquisições de bens e serviços, caso a proposta de criação de um único imposto sobre o consumo seja aprovada. Lembrando que o tema emerge por conta da ideia de extinguir todos os regimes especiais, incluindo a desoneração da cesta básica.

Para os defensores da PEC 45/2019, há a proposta de devolução do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) pago nas compras, conforme identificação de beneficiário listado no Cadastro Único do Governo Federal, que contém um conjunto de informações sobre as famílias brasileiras em situação de pobreza e extrema pobreza.

Ainda está por se entender sobre sua operacionalidade e eficácia. Questões sobre o quanto efetivamente o beneficiário estará pagando de impostos no ato da compra - aumento na carga tributária de alguns setores estarão em preços e não necessariamente no IVA destacado "por fora"-, ou sobre se haverá correção monetária, visto que a proposta fala em devolução mensal, ou ainda sobre o fato amplamente conhecido de que famílias mais pobres costumam comprar de estabelecimentos informais, etc.

Tenho insistido neste espaço que, sem solução para esse ponto, nenhuma reforma tributária exclusivamente sobre o consumo deve ser aprovada. Afinal, é sabido que o IBS assume a forma de um IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) e como tal é altamente regressivo. De outro lado, sabemos que sistema tributário brasileiro, em seu conjunto, também é regressivo. Com mais de 8 milhões de quilômetros quadrado, arrecada-se apenas R$ 1,4 bilhão por ano, ou seja, 0,02 ponto porcentual da carga tributária total, em ITR (Imposto Territorial Rural). Com uma alíquota de IRPF abaixo da média mundial, também é pecado falar em alíquota adicional superior aos 27,5%. Da mesma forma, é intocável o excessivo volume de deduções de imposto de renda, especialmente para dependentes. Com essas deduções passando dos R$ 400 bilhões por ano, montante mais de dez vezes superior aos gastos com o Bolsa Família, não seria difícil concluir que filhos de classe média brasileira recebem mais recursos do Estado do que os filhos de famílias pobres.

No Brasil, o tema da reforma tributária ganhou a exclusividade do verniz da eficiência econômica. Acredite se quiser, mais voltamos ao velho lema de crescer para depois distribuir. Afinal, alega-se que, com a PEC 45/2019 haverá ganhos de eficiência econômica, com a promoção da alocação eficiente de fatores de produção e, com isso, aumento do produto potencial. Já alertamos aqui que o estudo que sustenta essa hipótese é frágil. José Roberto Afonso, em conjunto com Wagner Ardeo e Geraldo Biasoto, em texto publicado no site do IBRE/FGV, seguiram a mesma linha de desmontar as fragilidades do estudo contratado pelo CCiF.

Não há dúvida de que a melhor forma de tributação sobre o consumo é aquela baseada no método de apuração por valor adicionado; e IVA não é novidade no Brasil. Isso está devidamente documentado na literatura internacional e conta com apoio da boa e velha teoria econômica. O problema é como garantir o princípio da não-cumulatividade tributária e como auferir os devidos créditos tributários ao longo da cadeia produtiva; ou ainda, como convergir para tal modelo sem deixar mortos e feridos pelo caminho, saindo do manicômio tributário.

Dito isso, volto à questão sobre como tirar o peso dos tributos dos mais pobres. Esse assunto não está resolvido. Isso deveria ser motivo suficiente para que propostas de reforma tributária que não endereçam esse problema com clareza e segurança tenham que ser colocadas em banho maria, para o bem de uma nação mais inclusiva. Ou estamos, mais uma vez, propondo o pacto da elite extrativista, nos termos de Daron Acemoglu, que resolve seus problemas de eficiência econômica e depois, quem sabe, passa-se aos problemas dos menos favorecidos?

Desnecessário lembrar que nossos problemas de desigualdades vão além da dimensão da renda. Somos absurdamente desiguais em termos regionais, em gêneros e raça. Não à toa estamos entre os países mais desiguais do planeta, conforme Índice de Gini. Nossa desigualdade de renda é tão alta quanto a de Botswana, Honduras ou Zimbábue. Com a PEC 45/2019, de sobra, jogamos fora qualquer mecanismo tributário para reduzir as disparidades regionais. É certo que grande parte da desigualdade regional de renda é explicada pela desigualdade educacional. Mas, cadê a política educacional de qualidade para regiões mais carentes? Diz-se que a melhor forma para mitigar as desigualdades é por meio de gastos públicos, e não por meio da tributação, no que não discordo também. Mas como vamos colocar mais gastos obrigatórios no altamente engessado orçamento público? A gestão da política fiscal será ainda mais prejudicada? Somos banhados diuturnamente por esses discursos fáceis de uma elite extrativista.

Corre em paralelo uma discussão no escuro do governo federal sobre o que fazer com o auxílio emergencial, a partir de janeiro de 2021. Esse benefício para famílias vulneráveis, durante a pandemia da Covid-19, pode consumir mais de R$ 300 bilhões de reais em 2020. Dado que o problema da pandemia tem elevada probabilidade de se prolongar, pelo menos até o primeiro semestre do próximo ano, e com consequências sociais e de emprego para essa população vulnerável por todo o ano seguinte, a questão é saber se o país suporta gastar outros R$ 300 bilhões.

Soluções mágicas baseadas em contabilidades criativas ou em mero agrupamento de benefícios sociais, como o Bolsa Família, o Abono Salarial, o Salário-família, e o Seguro Defeso, caminham na direção daquele pacto típico de elite extrativista. Aqui me pego citando mais uma vez, Machado de Assis, com a licença para citar escritor desta monta no meio de mundana discussão tropical: tolera-se com paciência a cólica... do próximo.

Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde Coordena o Programa de Pós-Graduação em Finanças e Economia e escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente às quartasfeiras.

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