31/07/2020
Por Tathiane Piscitelli Professora de direito tributário e Finanças públicas da Escola de Direito de São Paulo da FGV, é doutora e mestre em direito pela Faculdade de Direito da USP
Na sexta-feira passada, o governo federal enfim apresentou uma
parcela de sua reforma tributária: o Projeto de Lei (PL) nº 3887/2020,
que institui a CBS, contribuição sobre bens e serviços. O novo tributo
extingue o PIS e a Co!ns e regimes atrelados a essas contribuições
para criar um imposto sobre valor agregado.
Esta semana, Paulo Guedes, ministro da Economia, voltou a falar
sobre a instituição de um “imposto digital” e, ainda, sobre a
possibilidade de acoplar o IVA federal às propostas de reforma
tributária que abrangem impostos estaduais. Nessa mesma ocasião,
reforçou que não haverá aumento de carga tributária e cogitou da
tributação de fatos “que hoje estariam isentos, como as novas
atividades no meio digital”.
Há pouca transparência envolvida nessas manifestações e, neste texto,
pretendo jogar luzes sobre algumas delas.
Em primeiro lugar, gostaria de enfrentar a proposição de que não
haverá aumento de carga tributária. Como se sabe, há hoje dois
regimes principais de tributação para o PIS e a Co!ns, sendo um
cumulativo, com alíquota de 3,65%, e outro não cumulativo, com
alíquota de 9,25%. A CBS teria uma alíquota de 12% e ampla
possibilidade de apropriação de créditos: todas as entradas de bens e
serviços seriam passíveis de creditamento do valor da contribuição
destacado na nota !scal. Atualmente, há um grande contencioso em
torno dos créditos passíveis de apropriação no regime não cumulativo
do PIS e da Co!ns e tal debate seria, em tese, eliminado.
Há um detalhe, porém: as empresas que hoje estão no regime
cumulativo e se valem do uso intensivo de mão de obra, como as
integrantes do setor de serviços, teriam severas di!culdades na
apropriação de créditos. Isso porque o creditamento depende de as
aquisições serem acobertadas por nota !scal – o valor do crédito é o
da CBS destacado na nota !scal. Aqui está, então, a primeira falácia:
haverá sim aumento da carga tributária, ao menos para aquelas
pessoas jurídicas prestadoras de serviços que recolhem as
contribuições pelo regime cumulativo. A fala de que não haverá
aumento de carga, que provavelmente se refere à proporção
arrecadação x PIB em nível nacional, esconde o fato de que o novo
sistema poderá reduzir a tributação de alguns setores, mas aumentará
a de outros.
A segunda dissimulação do governo está na CBS em si. Ainda que
deixemos de lado o aumento da carga tributária, negada pelo governo,
há outra questão: a contribuição criada não é equivalente ao PIS e à
Cofins extintas. Como a coletiva do Ministério da Economia deixou
claro, não se trata de mera uni!cação das contribuições, mas de um
regime novo, que adota o mecanismo de valor agregado. Exatamente
neste ponto os problemas aparecem.
A tributação que considera o valor agregado é técnica utilizada nos
impostos que incidem sobre o consumo de bens e serviços, onerado,
no Brasil, via ICMS, dos Estados, e ISS, dos municípios. A União, de seu
turno, não detém competência para tributar tais fatos. Nos termos do
artigo 195 da Constituição, a União poderá criar contribuições para
!nanciar a Seguridade Social – tal qual o CBS se propõe a ser –
incidentes sobre folha de salários, receita bruta, faturamento,
importação e bens e serviços e alguns outros fatos, mas, nunca, sobre
operações com bens e serviços.
Em evento recente, realizado pela Comissão de Direito Tributário da
OAB/RJ, Sérgio André Rocha destacou: “a nova contribuição é confusa,
porque parte de uma competência que a União Federal não tem; o
artigo 2º [do PL] tenta constitucionalizar a CBS, mas o resultado é um
tributo que certamente gerará contencioso a respeito de sua
compatibilidade com a Constituição”. Ou seja, a CBS é, em verdade, um
novo tributo, sem previsão constitucional.
Esse fato fica ainda mais evidente à luz das manifestações de Paulo
Guedes: a ideia é de “acoplamento” da CBS com o IVA estadual e,
assim, alinhamento da proposta federal com a PEC 45, que prevê a
unificação de toda a tributação do consumo em torno do IBS, imposto
sobre bens e serviços. Não fosse o fato gerador da CBS o mesmo do
IBS, que pretende incidir sobre todas as operações com bens e
serviços, sequer faria sentido cogitarmos dessa uni!cação, agora
defendida pelo ministro.
O último ardil do governo gira em torno do “imposto digital”: cogita-se
a criação de um tributo sobre transações !nanceiras ocorridas em
ambiente virtual. O valor seria devido também nos casos de
pagamento em dinheiro, caso haja “registro digital da operação”, nas
palavras do assessor especial do Ministério da Economia, Guilherme
A!f Domingos. Há uma grande retórica envolvida no novo imposto. A
alcunha “digital” pode, aos desavisados, vinculá-lo ao debate da
tributação das empresas de tecnologia. Aliás, isso aparece na fala de
Paulo Guedes, ao afirmar que, hoje, as atividades no meio digital estão
isentas. Isso, evidentemente, não é verdade.
As empresas de tecnologia sediadas no Brasil pagam regularmente
tributos federais e, a depender da atividade, o ISS, imposto sobre
serviços que, atualmente, onera quase toda a economia digital. Sobre o
que incidiria tal imposto, então? Sobre transações financeiras; nada
mais do que uma nova roupagem da antiga CPMF, como bem destaca
Miriam Leitão, em artigo do jornal O Globo, mas que mira
especialmente o comércio eletrônico, ainda que atinja não apenas a
ele.
Não é somente pelo nome do imposto que a reforma tenta vender
gato por lebre: o bordão “não vai ter aumento da carga tributária”
esconde mais do que revela. A reforma tributária impactará
diretamente todos os brasileiros, mas não de maneira uniforme.
Explicitar os ganhadores e perdedores poderia revelar a boa intenção
do governo, mas não só. No contexto atual, de crise social e
econômica, o aumento de preço sobre serviços essenciais e a maior
oneração do comércio eletrônico, um dos poucos a crescer durante a
pandemia, pode ter mais reveses do que ganhos no longo prazo.