17/10/2014 13:41
Ensaio de modernização
Meio aloprado, meio audacioso, e empurrado por pressões internacionais, o modelo Zona Franca de Manaus retrata um ensaio de modernização do capitalismo no Brasil, cujos avanços demonstravam a necessidade de dotar a região de condições de meios de vida e infraestrutura que atraíssem para ela a força de trabalho e o capital, nacional e estrangeiro, vistos como imprescindíveis para a dinamização das forças produtivas locais, objetivando instaurar na região condições de “rentabilidade econômica global”. Implantar o modelo fundado em renúncia fiscal, portanto, mais do que priorizar a redução das desigualdades regionais, tinha por meta promover o desenvolvimento de um conceito ainda vago de brasilidade atrelado necessariamente a circunstâncias político-econômicas locais, nacionais e mundiais. É de suma importância recordar o contexto global de Guerra Fria que forçava a opção nacional entre conservar-se na área de influência norte-americana ou encaminhar-se para o guarda-chuva soviético. Além disso, avançava o processo de descentralização industrial, impulsionado pelas inovações nas comunicações e transportes, pela indústria eletrônica e pela organização dos trabalhadores nos países industrializados.
Regime de Exceção
Internamente, a resolução das tensões relativas ao aprofundamento da democracia liberal representada por João Goulart e, acirramento com os movimentos de cunho socialismo, desembarcou no Movimento Militar de 1964 e da implantação do Regime de Exceção, que conduziu a política econômica nacional de modo a acolher o capital estrangeiro no processo de apropriação e uso das forças produtivas do país. A Amazônia, açoitada pela estagnação econômica, com a súbita evasão dos investimentos dos Acordos de Washington, de 1942, precisava de uma nova inversão. A Operação Amazônia, de que a Zona Franca de Manaus é um capítulo, é uma espécie de síntese desse quadro global, na medida em que ela resolve, no plano nacional, o modo por meio do qual ocorreria a regionalização do desenvolvimento do capitalismo, entendido como início da modernidade e profissionalização dos negócios. A Operação Amazônia compatibiliza o discurso nacionalista do militarismo com as reivindicações acerca do desenvolvimento regional da Amazônia e com o processo de transnacionalização do capital.
Dossiê Amazônia
Retomar um pouco dessa história, na carona da dissertação de José e Marcelo Seráfico, Dossiê Amazônia Brasileira, publicado pela USP, é um exercício acadêmico para compreender como, no jogo entre expectativas de integração à nação e os impasses gerados pela internacionalização, a Zona Franca foi-se, progressivamente, convertendo num espaço de relações globais que não avançou nos caminhos da inovação tecnológica e apropriação de capital intelectual como outros modelos similares e concomitantes. Desde o fim dos Acordos de Washington, a economia da Amazônia, de um modo geral, e do Amazonas, em específico, via-se órfã de políticas do governo federal que permitissem a reprodução local do desenvolvimento experimentado pelo Centro-Sul do país. Os estragos causados pela substituição da “borracha natural” pela “borracha sintética” não foi compensado pelo aumento dos subsídios à extração da borracha num momento em que as atenções do governo federal estão tomadas pelas possibilidades de substituir importações, tendo em vista aprofundar a industrialização do país. Demorou quase dezesseis anos entre a apresentação do projeto de lei nº 1.310 e a assinatura do decreto-lei nº 288, que criou e detalhou a Zona Franca de Manaus. A demora foi acompanhada pela sistemática frustração das expectativas de setores da sociedade local quanto a medidas federais que permitissem a dinamização e revitalização econômica do Estado.
Pressão nativa
Mesmo assim, os empreendedores locais não ficaram de braços cruzados. Na Associação Comercial do Amazonas e na Federação das Indústrias do Estado do Amazonas sobravam discussões e articulações para tirar o modelo do papel. Foi assim que, do ponto de vista de alguns segmentos da sociedade local, a sensação de abandono, esquecimento e incompreensão predominante cedeu, a partir da Operação Amazônia, à de esperança e alento. O que aparentemente é um problema – a cooperação entre o militarismo, a economia mundial e o nacionalismo – faz parte de um momento definido da ordem internacional. O que foi determinante – alimentado por relações pessoais entre os atores presentes, desde o empreendimento da Refinara de Manaus, foi a concepção e a decisão de implantação da Zona Franca de Manaus. Ela se funda em processos e relações mais amplas que efetivam um movimento de descentralização da produção capitalista fora das suas zonas originárias. No caso específico de Manaus, a estagnação econômica tanto contribuía para rebaixar o valor da força de trabalho quanto para aumentar a concorrência entre os trabalhadores por emprego, o que implicava dificuldades para sua organização política. Num tal contexto, o Regime Militar criou algumas das condições que permitissem ampliar as oportunidades de investimento capitalista e controlar a força de trabalho num processo em que esta se integrava em situação bastante frágil.
O papel do modelo
Com o privilégio do olhar retrospectivo, pode-se dizer que a Operação Amazônia e a Zona Franca de Manaus foram poderosos mecanismos de ajustamento das relações de produção na região às possibilidades de expansão do capitalismo monopolista no Brasil; ou sob outro ângulo, foram formas de criar no país novas oportunidades de investimento e lucratividade para a “livre empresa”, nacional e estrangeira; ou ainda, foram uma estratégia e uma tática de dinamização das forças produtivas regionais que consistiu – faça-se uma concessão ao neoliberalismo tupiniquim – na redução do custo Amazônia. É nesse quadro que se recoloca a “questão regional”, isto é, o problema de como as regiões brasileiras encontram ou veem inviabilizadas suas possibilidades de participação – social, cultural, ambiental, científica e tecnológica, política e econômica – no processo de formação da nação; é nesse quadro, portanto, que cabe avaliar o passado, apontar os impasses do presente e descortinar alternativas de futuro. Este é um debate vital para nortear projetos e as premissas de sua implantação nos próximos 59 anos.
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Esta Coluna é publicada às quartas, quintas e sextas-feiras, de responsabilidade do CIEAM. Editor responsável: Alfredo MR Lopes. cieam@cieam.com.br
Publicado no Jornal do Commercio do dia 17.10.2014