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Por Marcelo Ramos 24.jun.2023 (sábado) - 6h00
Antes de qualquer comentário é preciso dizer que matéria tributária não se analisa de forma conclusiva a partir de um protocolo de intenções com diretrizes. É necessário aguardar o texto final do substitutivo da PEC. Na 5ª feira (22.jun.2023), o relator do projeto apresentou uma proposta inicial, que ainda deve ser debatida e sofrer mudanças. Apesar disso, o relatório já apresenta alguns sinais que merecem uma análise crítica para que, no afã de aprovar uma reforma a qualquer custo, não se acabe aprovando um modelo que torne nosso sistema tributário ainda mais caótico.
As diretrizes gerais, segundo o relatório são: substituição dos 5 tributos sobre o consumo por 1 imposto geral cobrado sobre o valor agregado e 1 imposto específico sobre determinados bens; imposto Geral (IBS): base ampla; cobrado por fora, cobrado no destino, não cumulatividade plena, poucas alíquotas e exceções; imposto Específico (IS): desestimular o consumo de bens e serviços prejudiciais a saúde e ao meio ambiente. Já nas diretrizes surge o 1º problema. O imposto geral (IBS), na verdade, não é um imposto, são 2, já que o relator deixa claro que adotará o modelo de IVA Dual.
A PEC 45 estipula uma alíquota de 25%, sendo 9% para a União, 14% para os Estados e 2% para os municípios. Ocorre que a alíquota de 25% –já questionada por inúmeros especialistas e com indicação de que a alíquota necessária para manter a neutralidade é de 29,1%– estava prevista para um sistema sem regimes especiais e sem alíquotas reduzidas.
Assim, é absolutamente temerário aprovar uma reforma sem estudos que indiquem claramente qual a alíquota necessária para manter a neutralidade, considerando as diretrizes do relatório que já não são as mesmas da PEC 45.
É um alerta inicial registrar que técnicos dos Estados já falam em uma alíquota de 40%, com todas as exceções, o que daria um ganho ínfimo para a indústria e uma perda enorme para o agro, os serviços, o comércio e a construção civil.
IVA DUAL – Na verdade, a ideia de um IVA Dual aproxima muito, nesse aspecto, a proposta do GT daquela contida na PEC 46 (Simplifica Já), posto que, na prática teríamos o fim do PIS/Cofins, a substituição do IPI pelo IVA Federal e a criação de uma IVA Estadual com uma legislação federal definido as regras gerais do modelo. Novidade mesmo, só o fim do ISS, com forte resistência dos grandes municípios.
NÃO CUMULATIVIDADE – A não cumulatividade é traduzida no relatório como um compromisso de incluir no texto a garantia de que todos gastos que contribuam para a atividade econômica do pagador de impostos serão creditados. Porém, a Constituição já estabelece expressamente que o ICMS é não cumulativo, portanto, ainda que venha a ter um texto mais preciso –o que não é o caso–, a não cumulatividade depende mais de uma decisão política de reconhecimento dos créditos e da implantação de um sistema de creditamento automático do que de uma mudança no texto constitucional.
RECONHECIMENTO DO CRÉDITO – Deve ocorrer independentemente de comprovação de recolhimento pelo fornecedor. É inacreditável que o texto original da PEC transferisse para o pagador de impostos o papel estatal de fiscalizador do pagamento dos tributos. O ajuste indicado no relatório é só o reestabelecimento das obrigações de cada ente na relação tributária.
COBRANÇA “POR FORA” – Não é razoável que seja necessário a reforma de todo o sistema tributário para dizer que o tributo não incide sobre o tributo.
COBRANÇA NO DESTINO – A cobrança no destino tem como objetivo coibir a guerra fiscal. Sobre guerra fiscal, é necessário analisar 2 aspectos: 1) a constatação de que, sem guerra fiscal, a indústria não estaria distribuída minimamente no território nacional e 2) já existe norma impedindo a concessão de benefícios fiscais e convalidando os já existentes, sem prévia autorização do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária). Ademais, a cobrança no destino criará considerável perda orçamentária para Estados como Amazonas, Goiás, Mato Grosso do Sul, por exemplo, que, aprovada a reforma nos termos indicados pelo relatório, passarão a ser dependentes de repasses do Fundo destinado a essa transição federativa.
ALÍQUOTA DE REFERÊNCIA – O relatório sinaliza que a alíquota de referência só será definida por lei complementar. Admitir a aprovação de uma reforma sem ter noção do percentual de alíquota de referência é temerário, mais ainda se considerarmos que nas discussões sobre a PEC 45 a especulação era de uma alíquota única na ordem de 25%, sem nenhuma alíquota diferenciada, sem Zona Franca de Manaus, sem Simples e com regimes especiais específicos só para bens imóveis, serviços financeiros e combustíveis e lubrificantes, para manter a neutralidade da reforma.
Desde já, é importante alertar que não há qualquer sinalização no relatório da reforma de qual a alíquota neutra para um sistema que incluirá seguros e cooperativas como regime fiscal específico, propõe a manutenção dos benefícios do Simples e da Zona Franca de Manaus e indica alíquotas diferenciadas pelo menos para saúde, educação, transporte público, aviação regional e produção rural.
Aqui, é necessário ressaltar novamente que a alíquota de 25% já parecia ser insuficiente para a neutralidade pretendida nos termos da PEC 45. Nos termos atuais, técnicos falam em alíquota neutra de 40% e ainda que a destinação de 2% para municípios é muito aquém do orçamento de municípios médios e grandes, representados pela FNP (Frente Nacional de Prefeitos). Estes, correspondem a 70% da população brasileira e teriam que aprovar aumento de alíquota em suas câmaras municipais, judicializar, no caso de vedação expressa no texto da PEC, ou cortar despesas.
ALÍQUOTAS DIFERENCIADAS – Indica alguns setores, como já citado no item acima, mas certamente receberá pressão para a inclusão de novos setores, notadamente aqueles da indústria com cadeia curta, como a construção civil, também a indústria de alimentos, para só ficar nesses exemplos.
CASHBACK – A referência ao cashback no relatório é absolutamente genérica e não permite uma conclusão. De registrar que a ideia de receber o tributo para depois devolver para uma parcela da população, que só saberemos qual é no texto da PEC, ou mesmo em regulamentação infraconstitucional, parece simples mas é de difícil implementação pelos custos de manutenção e operacionalização do modelo, além dos risco de fraude.
IMPOSTO SELETIVO – Mais uma temeridade no texto do relatório, posto que a indicação dos setores escolhidos para incidência é remetida para lei complementar, apenas com a indicação de que o imposto serviria para desestimular o consumo de bens e serviços nocivos à saúde e ao meio ambiente. A despeito de parecer certo que a seletividade deve incidir sobre cigarros e bebidas alcoólicas, ficaria aberta a possibilidade de manutenção injustificada de alíquotas diferentes para cervejas e bebidas destiladas e a incidência da seletividade sobre bebidas açucaradas, alimentos ultraprocessados, combustíveis fósseis, energia elétrica e até automóveis.
ZONA FRANCA DE MANAUS – A manifestação de compromisso com as vantagens comparativas da ZFM não está acompanhada do modelo de adequação ao novo sistema tributário. Alerto que será muito difícil chegar a essa adequação. Se um dos objetivos da reforma é reduzir a carga tributária da indústria, não excluir expressamente dessa redução os produtos da ZFM criará uma redução da diferença entre produzir dentro e fora da ZFM. Resta ainda o fato de que parte significativa das empresas tem atualmente redução de PIS/Cofins, que deixará de existir, e de ICMS que será transformado em IVA Estadual, sem possibilidade de renúncia.
Assim, uma coisa é declarar compromisso com a ZFM, outra é criar mecanismos que mantenham integralmente as vantagens comparativas e a natureza constitucional do modelo. O relatório efetivamente não indica mecanismos de transição para o novo modelo tributário e nem de compensações que mantenha as vantagens comparativas.
SIMPLES – O relatório afirma a manutenção do Simples e indica o modelo, com possibilidade de escolha pelo pagador de impostos entre o pagamento unificados dos tributos ou o pagamento do IBS (IVA Federal).
FUNDO DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL – O relatório trata o fundo como mecanismo para “estimular a manutenção de empreendimentos nas regiões menos desenvolvidas, que deixarão de contar com benefícios fiscais dos tributos extintos”. Ou seja, a proposta é a troca de incentivos de consumo por aportes financeiros. Ocorre que, no incentivo de consumo decorrente de gastos tributários de ICMS, ISS, IPI ou PIS/Cofins, o benefício só ocorre depois da instalação da fábrica, compra de equipamentos, de insumos, contratação de pessoal, estrutura de venda e só nessa última etapa o benefício se efetiva. Já no Fundo, o aporte financeiro é feito sobre um planejamento de montagem ou ampliação de um empreendimento que pode dar certo ou não. Para entender a diferença, basta comparar os exitosos resultados da ZFM com os frustrantes resultados da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) ou da execução dos Fundos Constitucionais de Desenvolvimento Regional. Aqui, nem considero a tradição de contingenciamento de recursos de fundo.
TRANSIÇÃO PARA O NOVO MODELO – Esse é um aspecto que deve ser analisado sob a ótica do objetivo de simplificação que justifica a presente reforma. Pela PEC 45, por 10 anos a convivência do atual sistema tributário, considerado caótico, com um novo sistema, e suas 27 leis estaduais, 5.568 leis municipais e mais decretos, portarias e resoluções editadas para o novo modelo. Por 10 anos, teremos o atual manicômio tributário multiplicado por 2.
Seria muito mais racional usar a PEC 46 como transição, posto que ela já efetiva a junção do que é mais urgente: a junção dos 27 ICMS´s, em um ICMS nacional, e dos milhares de ISS´s, em um ISS nacional. Deve-se registrar que parte dessa alteração nem mesmo precisaria de PEC bastando uma Lei Nacional do ICMS (lei complementar) e uma Lei Nacional do ISS (lei complementar).
Criando ICMS nacional e o ISS nacional com regras gerais uniformes, definidas em legislação federal teríamos uma fusão horizontal menos traumática e que prepararia para uma fusão vertical menos complexa, com transição curta e com menos custos para as empresas.
TRANSIÇÃO FEDERATIVA – Antes de falar de transição federativa é importante localizarmos a Federação no nosso sistema constitucional. A forma federativa de Estado está inserida na nossa Constituição, como cláusula pétrea, aquelas que não podem ser mudadas nem por emenda constitucional. Considerando que o poder de tributar está no núcleo do sistema federativo, medidas que comprometam esse poder, como aquela que veda o aumento de alíquotas pelos municípios, serão afastadas por inconstitucionalidade. Assim, antes de falar em transição federativa, é importante reconhecer o poder de tributar dos entes federativos subnacionais.
Quanto a transição federativa, ela parte de uma premissa meramente especulativa de que a reforma trará ganhos de arrecadação e, ao fim, transforma o poder de tributar de Estados e municípios em uma dependência de repasses da União.
TRIBUTAÇÃO SOBRE RENDA E PROPRIEDADE – IPVA (Imposto sobre a propriedade de veículos automotores), ITCMD (Imposto de transmissão causa mortis e doação) e IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana). Se há um aspecto positivo no relatório é a tentativa, ainda que tímida, de passar um sinal para a sociedade de que haverá também mudanças na tributação sobre a renda e a propriedade, essas sim, expressão de riqueza.
Pretendo concluir esta análise com 2 aspectos que julgo absolutamente relevantes. Não há sistema tributário progressivo com sobretaxação do consumo e subtaxação da renda e da propriedade. Assim, é um erro de origem do debate sobre reforma tributária, separar reforma de consumo de reforma de renda e propriedade. Se a reforma sobre o consumo é neutra, a que virá depois sobre a renda, certamente, não será. Portanto, em perspectiva, teremos aumento da carga tributária, quando poderíamos, em realizando as duas reformas em conjunto, reduzir a carga sobre o consumo a partir do ganho que teremos na carga sobre a renda.
Por fim, o sentimento que passa é de que o mercado e os agentes políticos querem uma reforma, seja qual for, apenas para a bolsa e a economia darem um voo de galinha pelo efeito quase que propagandístico da aprovação. Mas os sinais da atual reforma indicam um sistema mais complexo e mais regressivo que o atual, além de uma hiperconcentração da atividade industrial em uma só região do país, criando uma ilha de prosperidade cercada por um oceano de pobreza.
O fim do PIS/Cofins com recomposição da receita pelo IPI ou IVA Federal, a criação de uma lei nacional do ICMS, a criação de um Marco Regulatório de Políticas de Desenvolvimento Regional e Setorial, a decisão política pela não cumulatividade do ICMS, já prevista no atual texto da Constituição, a criação de uma lei nacional do ICMS e a definição constitucional de não cumulatividade do ISS seriam medidas muito mais simples, boa parte delas de natureza infraconstitucional, e muito mais efetivas para o objetivo de simplificação e progressividade do sistema tributário nacional.
Fonte: Poder 360