19/07/2023 12:33
Por Márcio Holland
Depois de mais de 30 anos de espera, o Brasil parece ter pressa em reformar o seu sistema tributário. Ganhou ares de final de Copa do Mundo a aprovação do texto na Câmara dos Deputados e há expectativas de trâmite acelerado no Senado. Há muita celebração, justificada, mas há também muita frustração. Para os proponentes do texto original da PEC 45/2019, estamos fugindo da reforma ideal, enquanto para seus críticos, legislações ordinárias poderiam levar a resultados similares. Ambos, defensores da PEC 45/2019 e seus críticos, têm suas razões. Contudo, é hora deixarmos de lado o embate da forma e de buscarmos convergências para promovermos aperfeiçoamentos no texto a ser aprovado no Senado.
Sem desejar ser exaustivo, poder-se-ia rever algumas ideias contidas no texto. Primeiro, vale lembrar que se defendia, de modo pertinente, o fim da desoneração da cesta básica, mas teremos, agora, uma emenda constitucionalizando alíquota reduzida a zero para produtos definidos como pertencentes à Cesta Básica Nacional de Alimentos. Neste caso, o mecanismo do cashback, uma política pública mais focalizada, ainda a ser desenhada, parece perder relevância.
Segundo, pairam dúvidas aterrorizantes sobre se a CBS (Contribuição sobre bens e serviços), que deve substituir PIS e COFINS, será regulamentada por lei ordinária, como já previa o PL 3.887/2020, mas o IBS (imposto sobre bens e serviços), que deve substituir ICMS e ISS, seria regulamentado por Lei Complementar. Vale destacar que o texto prevê pertinentemente que ambos, CBS e IBS, tenham os mesmos "fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos; imunidades; regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; e regras de não cumulatividade e de creditamento". Mas, como garantir que as interpretações do Conselho Federativo, ou de fiscos estaduais, para o caso do IBS, serão exatamente iguais às da Receita Federal do Brasil, para o caso da CBS?
Terceiro, o texto prevê alguma ideia de crédito presumido, se entendi bem isso, sobre Imposto Seletivo, que deveria ser um imposto sobre produtos prejudicial à saúde e ao meio ambiente. É certo que o IPI é um imposto fora de moda, mas faz sentido esse movimento, de acabar com algo velho e colocar um Frankenstein no seu lugar?
E, por fim, sem falar de aberrações como a de permitir que Estados e o Distrito Federal instituam contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, aprovada de última hora, na madrugada, sem estar previsto no texto do substitutivo.
Adicionalmente, há imprecisões e controvérsias sobre qual será a alíquota do IVA brasileiro, ao final da transição, em 2032. Mas, não é baixa a probabilidade de termos o maior IVA do mundo, entre 27% e 30%, sendo que a média não ponderada de países membros da OCDE é de 19,2%. O IVA brasileiro será tanto maior quanto mais produtos e serviços tiverem alíquotas diferenciadas ou reduzidas a zero, além de aporte www.broadcast.com.br 19/Jul/2023 10:17 Pág. 1 / 2 © Broadcast - Proibida a reprodução sem autorização. Agência Estado - Av. Eng. Caetano Álvares, 55 - 3º andar - CEP 02598-900 - São Paulo-SP. Central de Atendimento - (11) 3856-3500 / 0800-011-3000 a fundos como o Fundo de Desenvolvimento Regional, o fundo de compensação de benefícios fiscais, e conforme o tamanho do mecanismo de cashback e o nível de sonegação fiscal. Neste último caso, vale o registro de que a sonegação sobre o IVA na OCDE é em torno de 20%. No Brasil, um país em que o rendimento nominal mensal domiciliar per capita da população residente é de R$ 1.625,00, o cachorro corre atrás do rabo, o seja, quanto maior o IVA brasileiro, maior tenderá a ser a sonegação fiscal e, com isso, maior deverá ser a soma das alíquotas da CBS com o IBS, em esforço de recuperação a arrecadação tributária para financiar os gastos públicos sempre crescentes.
Para a boa teoria econômica, um sistema tributário ideal é aquele que promove a neutralidade, ou seja, que não interfere nas decisões dos agentes econômicos. Contudo, desde Adam Smith, com suas contribuições de meados para final do século 18, é preciso respeitar a capacidade de pagamento de cada indivíduo (ability-to-pay). De outra forma, a carga tributária deve ser proporcional à renda dos indivíduos. Mais recentemente, passamos a desejar um sistema tributário "neutro" (que não cause por si a alocação dos fatores de produção) e, ao mesmo tempo, "justo", talvez por herança aos iluministas e à ideia de justiça e igualdade social. Em livro-texto de economia do setor público, o Nobel de Economia Joseph Stiglitz descreve cinco pilares de um sistema tributário adequado, incluindo, além da neutralidade e da equidade, o princípio da transparência (saber quanto se paga de tributo), da simplicidade administrativa e da flexibilidade (adaptar-se às condições econômicas).
Teoricamente, é válido questionar qual seria o desenho ótimo de sistema tributário para o caso do Brasil, se desejássemos respeitar os cinco pilares apontados por Stiglitz. Ou, nos termos de James Mirrlees, outro Nobel de Economia, como garantir a tributação ótima em uma economia com indivíduos que têm diferentes habilidades e preferências, que garanta a equidade social e incentive o trabalho e a produtividade?
Seria preciso se propor a fazer uma ampla e profunda reforma na tributação sobre o consumo, a renda das pessoas e das empresas, o patrimônio, a folha de salários, além de introduzir um "excise tax", ou um imposto com o objetivo de desencorajar o consumo de bens prejudiciais à saúde e reduzir o impacto ambiental. Contudo, na prática, a teoria é outra. Seria praticamente impossível atingir algum lugar de equilíbrio entre aqueles cinco atributos de Stiglitz à luz da realidade das imensas desigualdades sociais e regionais, de um Estado pouco eficiente e altamente gastador, e de instituições socioeconômicas e políticas frágeis.
Em defesa do texto da reforma, na expectativa de passar por aperfeiçoamentos no Senado Federal, vale o fato de que é preciso acreditar que podemos ter um pouco mais de simplificação tributária e de transparência sobre o quanto pagamos de tributo. Já seria uma vitória. Vale a ressalva à sociedade de que o texto final, mesmo aperfeiçoado, deverá manter a previsão de uma longa e difícil transição, sob grandes incertezas, mas que pode permitir acomodações setoriais. Podemos estar construindo um sistema tributário um pouco melhor, ainda que suas entregas estejam aquém do necessário para a salvação do fraco crescimento brasileiro.
Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde coordena os "Diálogos Amazônicos" e a Pós-Graduação em Finanças e Economia (Master), e escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente às quartas-feiras.
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