23/07/2020
*Márcio Holland
O governo federal deu, enfim, sinal de que pode colocar as cartas na mesa na agenda econômica. Lançou
uma proposta de reforma tributária faseada e convergente, como defendemos aqui inúmeras vezes. Tirou de
cena peças de ficção e colocou na ordem do dia a pauta de reforma tributária. No mundo ideal, precisamos
reformar todos os tributos, incluído a tributação sobre a renda, sobre a folha de salários e sobre patrimônio.
No mundo real, a simples simplificação do PIS e da Cofins vai atrair mais inimigos do que defensores. O
mais importante é que cada passo dado seja na direção de um sistema tributário mais racional e mais justo.
O secretário da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, e a assessora especial do Ministério da
Economia, Vanessa Canado, anunciaram o novo modelo de tributação sobre bens e serviços, com a fusão
do PIS e da Cofins em uma nova CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), com alíquota de 12%.
Lembrando que o PIS/Pasep e a Cofins possuem regras bastante similares, variando conforme seus
contribuintes, se pessoas jurídicas de direito privado, pessoas jurídicas de direito público ou contribuintes
especiais. Há, atualmente, duas formas de incidência: a cumulativa - com alíquota de 0,65% (PIS) mais
3,0% (Cofins); ou a não-cumulativa - com alíquota de 1,65% (PIS) mais 7,6% (Cofins). No primeiro caso,
não existe apropriação de créditos em relação aos custos, despesas e encargos e, no segundo caso, sim.
Contudo, é também por causa deste direito de apropriação de créditos tributários que começa o inferno das
empresas em sua luta em tentar demonstrar o que tem de custos e despesas que deveria dar crédito perante
o fisco.
A CBS tem como característica central o conceito de um "bom" IVA, dando direito a crédito amplo e
financeiro, "por fora", com devolução imediata de crédito tributário. Note que, nestes termos, a nova
alíquota nominal de 12% (calculada "por dentro") deve estar um pouco acima da alíquota de 9,25%
(calculado "por fora"), em termos efetivos. O ganho de simplificação e de redução de obrigações
assessórias mais do que compensa eventual aumento de carga tributária. Rigorosamente, há espaço para a
redução desta alíquota no âmbito do debate no Congresso Nacional. A título de ilustração, para um IVA
nacional de 25%, incluindo os cinco tributos previstos na PEC 45/2019, PIS e Cofins de equilíbrio deveria
estar um pouco abaixo de 10% e ICMS e ISS seria próximo a 15%.
O calcanhar de Aquiles é que os dois principais tributos federais já estariam reformados, com prazo para
implementação em seis meses, mas os demais tributos, dos demais entes federados, como o ICMS e o ISS,
demorariam um pouco mais para se tornarem um "bom" IVA (estadual/municipal). No caso deste IVA dos
entes subnacionais, caberia, ainda, discutir o critério de "destino" versus "origem". Pode-se, agora,
caminhar para algo mais razoável de combinação de critério de "destino", com um pouco de alíquota para
"origem", diferentemente das propostas em voga no Congresso Nacional, que define um IVA
exclusivamente apurado no "destino".
Outra questão que deve provocar muita discussão a partir da movimentação do governo federal é se seria
necessário um imposto novo, o IBS, com fase de transição longa, como proposto nas PECs em discussão
no Congresso Nacional, ou se não seria o caso de propor uma convergência daqueles tributos (ICMS e
ISS), com a mesma dinâmica de "virar a chave" em uma determinada data futura.
Há previsões para a discussão sobre um possível novo IPI, e a criação de um imposto seletivo, usualmente
voltado para incidir sobre produtos que geram externalidades negativas, como o fumo e bebidas alcoólicas.
Não mexer, agora, no IPI, foi "gol de placa".
Com isso, foi deixado para depois questões mais sensíveis, como a desoneração da cesta básica e a reforma
do IPI, base de vários regimes tributários, incluindo alguns tidos como alternativos e cravados na
Constituição Federal. Seria uma severa ruptura contratual perante centenas de projetos de investimentos já
contratados se tivesse sido incluído o IPI na CBS. E feririam de morte preceitos constitucionais em
matérias de regimes alternativos.
Vale destacar que a virtude da proposta do governo é a ideia de "virar a chave" logo, ou seja, definir um
período de 6 meses para sair de um modelo ruim de tributos e migrar para um tributo mais moderno. Tão
importante quanto a unificação de dois tributos, tem-se a promessa de redução das obrigações assessórias
em 70% e afastar, de vez, problemas de litigiosidade sobre o que dá ou não direito a crédito tributário. Da
mesma forma, dezenas de regimes especiais estão sendo extintos, ficando de pé apenas aqueles tidos como
mais técnicos, politicamente difíceis de serem extintos, ou regimes constitucionais, como a Zona Franca de
Manaus.
O jogo passa a ser sobre os impactos da nova CBS sobre diversos setores de atividade econômica, dado que se tem a majoração das alíquotas especialmente das empresas com incidência cumulativa de alíquota de 3,65%, como no caso do setor de serviços e construção civil. Contudo, o tributo arrecadado por esses setores em regime cumulativo é repassado para os demais setores atualmente no regime não cumulativo, que se creditam.
Ou seja, a CBS é, hipoteticamente, "anulada" ao longo da cadeia produtiva e o consumidor final é quem acaba ficando com o "ônus". Vale, ainda, em defesa do governo, o fato de que 90% das empresas no regime cumulativo estão no Simples e esse regime foi mantido intacto. Ou seja, o governo federal jogou bem desta vez. Optou pelo pragmatismo e, de sobra, abriu espaço para que a reforma tributária se torne uma realidade, e não mais peças de ficção.
(*) Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde coordena o Programa de
Pós-Graduação (lato sensu) em Finanças e Economia. Escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente
às quartas-feiras.