10/08/2018
*Ana Carolina Monguilod e Melina Rocha Lukic
Calma! O ICMS ainda não foi revogado.
O título acima apenas reflete o que alguns
gestores públicos e economistas talvez
estejam sentindo após a edição da Lei
Complementar nº 160/2017 e de sua
regulamentação pelo Convênio ICMS
190/2017, do Conselho Nacional de
Política Fazendária (Confaz).
A Lei Complementar 160 foi editada para resolver a guerra fiscal travada há
décadas entre Estados brasileiros, e que consistia na concessão de incentivos
fiscais inconstitucionais para atrair investimentos. Os incentivos eram de
toda a ordem: financiamentos, créditos presumidos, reduções de base de
cálculo, diferimentos para "nunca mais" etc. A inconstitucionalidade decorria
da ausência de aprovação unânime dos referidos incentivos por todos os
Estados no âmbito do Confaz, nos termos da Lei Complementar 24/1975 e da
Constituição Federal. O reconhecimento da inconstitucionalidade de tais
benefícios teria efeitos retroativos, obrigando os Estados a recuperar o ICMS
que deixou de ser cobrado.
Desde 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) está para aprovar proposta
de Súmula vinculante para reconhecer sua inconstitucionalidade.
Como o problema tinha dimensões
imensas, envolvendo inimagináveis
valores e inúmeras empresas atraídas
para diversos Estados somente por conta
de incentivos, o STF vinha adiando a
aprovação da Súmula, o que fazia,
supunha-se, para que o Congresso
resolvesse o assunto politicamente.
A solução política veio exatamente com a Lei Complementar 160, que
constitucionalizou os benefícios, ou seja, convalidou o passado. Além disso,
ela proibiu a criação de benefícios novos e criou um período de transição
durante o qual aqueles já vigentes poderão ser mantidos. Os prazos do
período de transição dependerão de sua natureza, podendo chegar a até 15
anos para os destinados ao fomento das atividades agropecuária e industrial,
bem como ao investimento em infraestrutura de transportes.
Até aí, o legislador andou bem. Era essencial garantir alguma segurança
jurídica no sentido de não condenar os contribuintes que, de boa-fé, se
beneficiaram de uma prática abertamente adotada há décadas por diversos
Estados. A utilização desses benefícios sempre foi um "open secret". Muitos
os usavam inclusive por sobrevivência. Como seus concorrentes já se
aproveitavam das benesses, não fazer o mesmo poderia significar falência. E
muitas vezes investimentos altos foram feitos exclusivamente em função dos
benefícios prometidos. Não seria razoável condenar o passado nem mesmo
interromper repentinamente o que estava em curso sem dar às empresas
uma oportunidade de adaptação.
Contudo, a Lei Complementar 160 não parou por aí e também resolveu
permitir que os Estados estendessem a concessão dos incentivos fiscais já em
vigor a outros contribuintes, inclusive no que se refere a incentivos de outras unidades federadas da mesma região.
Isto tem causado uma corrida a diversos Estados em busca de barganhas
melhores do que as já concedidas onde as empresas estão instaladas. Apesar
de o Convênio ICMS 190/2017 ter tentado vetar a "realocação" de
estabelecimento do contribuinte de uma unidade federada para outra, é
improvável que essa vedação seja eficaz.
Por um lado, a medida é louvável por dar um tratamento isonômico aos
contribuintes, já que aqueles que obtiveram os benefícios em um contexto de
inconstitucionalidade não deveriam ser favorecidos relativamente aos
contribuintes que não se beneficiaram. Por outro, tal medida gera grande
preocupação com uma nova corrida por incentivos. O ideal teria sido sua
eliminação gradual ao longo do prazo de transição, contemplando, dessa
forma, tanto a segurança jurídica quanto o tratamento isonômico entre os
contribuintes.
E por conta deste novo leilão de benefícios, a verdade é que LC 160 não
acabou com a guerra fiscal. Muito pelo contrário. Ela a institucionalizou e a
aprofundará em intensidade ainda desconhecida. Alguns Estados talvez
ganhem um pouco. Muitos certamente perderão.
Há o risco adicional de essas batalhas irem muito além dos prazos máximos
da Lei Complementar. Nada surpreenderia se a manutenção dos benefícios
fosse futuramente prorrogada, como tem acontecido com a DRU e a Zona
Franca de Manaus. Também temos dúvidas se serão eficazes as penalidades
previstas para os Estados que continuarem concedendo novos benefícios
inconstitucionais. Não surpreenderá uma futura nova lei para
constitucionalizar as inconstitucionalidades cometidas após a Lei
Complementar 160.
Nos anos de 2015 e 2016, o ICMS foi responsável por aproximadamente 20%
da arrecadação nacional (o que corresponde a 6,6% de PIB de uma carga de
aproximadamente 32% do produto interno bruto). Em um cenário de ajuste,
a intensificação da "guerra fiscal" não fará nada bem às contas públicas.
Somente irá deteriorar ainda mais os já escassos recursos dos Estados,
contribuindo para reduzir a importância deste tributo enquanto fonte de
receita para tais entes da Federação. As implicações da LC 160/2017 somente
reforçam a necessidade urgente de uma ampla reforma, que resolva as tantas
distorções do nosso sistema tributário.
É certo que os contribuintes sofrem com a atual insanidade tributária. Mas a
administração pública igualmente padece. É, portanto, interesse de todos
encontrar um modelo mais racional para que se acabe com este jogo de
perde-perde.
*São,
respectivamente advogada em São Paulo, assessora técnica da
FGV Projetos em temas de tributação e professora do Insper;
professora visitante da Universidade de Toronto