19/09/2019
Entrevista publicada pelo Valor Econômico
Por Marta Watanabe
Existe hoje uma “passarela de propostas” de reforma tributária que não tratam dos
verdadeiros problemas do sistema de impostos do país, avalia Everardo Maciel. Ex secretário da Receita Federal e titular da Logos Consultoria, Everardo não é a favor
de nenhum dos principais projetos em debate. Para ele, é um erro reunir os tributos
sobre consumo num Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Com alíquota única, o
tributo deve atingir a classe média “de uma forma mortal”. Aliada a eventuais
restrições em deduções de despesas de saúde no Imposto de Renda das Pessoas
Físicas, a criação do IVA resultaria em uma “tempestade perfeita da sonegação”, diz
Everardo.
A criação de um IVA é a base da PEC 110 e da PEC 45, as principais propostas de
reforma tributária em andamento. Elas tramitam, respectivamente, no Senado
Federal e na Câmara dos Deputados. As duas defendem um IVA como resultado da
reunião de tributos federais, entre eles PIS e Cofins, ao ICMS estadual e ao ISS
municipal. O governo federal não tem proposta formal, mas a equipe econômica
estuda a criação de um IVA inicialmente no âmbito federal, reunindo PIS e Cofins,
que depois teria adesão de Estados e municípios. O governo também tem estudado
restringir as deduções no IR das pessoas físicas.
Secretário da Receita Federal de 1995 a 2002, nos dois mandatos do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso, Everardo administrou a instituição da antiga CPMF,
cobrada de 1997 a 2007. Hoje, ele não é contra uma nova tributação sobre
transações financeiras, desde que com uma alíquota baixa e com possibilidade de
compensar - sem substituir, de modo parcial ou integral - a contribuição patronal
sobre folha. Na semana passada, porém, o presidente Jair Bolsonaro decidiu que o
governo não vai defender a recriação de um imposto nos moldes da CPMF
Em conversa no saguão de um hotel em São Paulo, Everardo lembrou que também
durante seu período à frente da Receita foi garantida a isenção de IR para a
distribuição de dividendos. Reverter a medida, para ele, seria um erro porque
forçaria o reinvestimento. “Hoje estou livre para reinvestir, investir em outro negócio
ou consumir. Tributando dividendos eu reduzo a liberdade econômica.” Segundo
ele, a isenção de dividendos, combinada com outras medidas, permitiu um crescimento real de 117% na arrecadação do IR das pessoas jurídicas de 1996 a
2002. Voltar a tributar dividendos é uma das medidas em estudo pelo governo
federal.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Como o senhor avalia as principais propostas de reforma em discussão?
Everardo Maciel: Nós temos um diagnóstico malfeito. Os verdadeiros problemas
tributários não estão sendo tratados, o que existe é uma espécie de passarela de
propostas. As principais questões tributárias hoje são insegurança jurídica, excesso
de litigiosidade, burocracia, e problemas específicos, pontuais, de tributos. As três
primeiras nada têm a ver com tributos. Os problemas monumentais com que me
defronto decorrem de processo tributário e não dependem do imposto. Um auto de
infração de R$ 6 bilhões, por exemplo. Isso não dependeu do imposto, está
relacionado com o processo tributário.
Valor: Mas o que o sr. acha das propostas que propõem o IVA?
Everardo: As pessoas me perguntam o que acho sobre 27 legislações de ICMS. Elas
existem porque o imposto é estadual e temos 26 Estados mais o Distrito Federal. O
que é chocante é constatar que não há diferença significativa entre elas. As
diferenças são em regimes especiais, o que é um problema. Há um processo que já
não está tão grave quanto esteve antes, de guerra fiscal.
Valor: Mas há diferenças de alíquotas de ICMS, não?
Everardo: Sim, mas isso não quer dizer nada. Não foi essa a intenção da
Constituição de 1988? O ICM, que antecedeu o ICMS, tinha alíquota única. Não
funcionou. Agora, o contrário de alíquota única não é uma infinidade de alíquotas, é
um número pequeno de alíquotas. O que se disse é que os Estados precisariam ter
liberdade. Mas a rigor, eu não vejo nenhuma dificuldade se um Estado tem alíquota
de ICMS de 17% num determinado produto e outro tem de 18%. Isso é irrelevante.
Nenhum país do mundo que tem um IVA tem alíquota única. Alemanha, Áustria,
Austrália, Canadá, todos eles têm muito mais que uma alíquota. A Índia, caso mais
recente, tem seis alíquotas.
IVA com alíquota única atingiria classe média de uma forma
mortal”
Valor: É o caso de criar faixas de alíquotas para o IVA?
Everardo: Não, esse não é o problema central. É verdade que o ICMS tem
problemas. Tem o problema da guerra fiscal. A Lei Complementar 160 [que
convalidou os benefícios irregulares existentes e restringiu a concessão de novos
incentivos de ICMS] foi um passo importante e precisa de complementos, mas está
na pista certa. A alíquota única quer dizer apenas uma coisa: transferir tributo de um
contribuinte para outro. Todos do regime do lucro presumido terão aumento de
carga tributária inacreditável, acima de 300%, podendo chegar a mais de 600%.
Valor: Isso somente com mudança na tributação sobre consumo?
Everardo: Sim, as primeiras vítimas são todos os 850 mil optantes do lucro
presumido, envolvendo pequenas prestadoras de serviços, pequenos comerciantes
e industriais. O autônomo, por exemplo, pode chegar a ter 680% de aumento de
tributação. Uma escola de tamanho médio, que hoje tem tributação que gira em 8%,
passará para 25%. A fonte dela é mensalidade. Então vou impactar o preço da
mensalidade escolar? E pior que gera um círculo vicioso. Por ter impactado o preço
da mensalidade, eu tenho mais receita, e aí tenho mais imposto. Vira uma espiral
tributária perversa. Médico já constituído, numa pequena clínica, tem aumento
também nessa ordem de grandeza. Ele vai subir o preço da consulta? E para que
fazer isso? Qual a lógica?
Valor: Quem mais pode ter aumento de carga?
Everardo: A agricultura toda. Setor de construção de civil, setor imobiliário, aumenta a prestação do Minha Casa, Minha Vida [MCMV], aumenta a prestação do plano de saúde, aumentam os aluguéis, sobretudo alcançando a classe média de uma forma mortal. Se acompanhada de uma redução ou eliminação da dedução dos gastos de saúde do Imposto de Renda, criamos a tempestade perfeita da sonegação. Ninguém vai ter interesse em pagar imposto. As piores distorções que existem em matéria tributária são sonegação e planejamento tributário abusivo. Se eu crio um ambiente favorável à sonegação, crio uma distorção mortal.
Valor: E quem ganha?
Everardo: As instituições financeiras, que hoje pagam PIS e Cofins sobre receita. No
primeiro semestre deste ano, a arrecadação, não incluindo os chamados serviços
auxiliares de instituições financeiras e não deduzida a parte relacionada com
serviços, foi de R$ 12 bilhões. Essa conta será paga por alguém. Quem pensa que
ganha é quem tem alíquota de IPI muito alta, mas ele pode perder com o imposto
seletivo. O que pode estar como agenda oculta disso? Extinguir a Zona Franca de
Manaus.
Valor: O sr. acha há uma agenda oculta nas propostas?
Everardo: Claro. Ou então não tem nexo. Eu tenho críticas à Zona Franca. Mas, se
pretende extinguir, que se diga abertamente. O que vai dizer aos milhares de
desempregados da Zona Franca de Manaus? Que acabou e aquilo é apenas uma
fantasia? A Zona Franca tem problemas, mas o remédio não é extingui-la. Por que
não se fala das alíquotas por setores nessas propostas? Por que não se discute a
repercussão sobre os preços e quem é alcançado por ela? Por que não se diz com
precisão quem são os beneficiários da proposta?
Valor: Essa crítica do sr. vale tanto para o IVA nacional como para o IVA federal
estudado pela atual equipe econômica?
Everardo: Sim. Se houver unificação de tudo para a não cumulatividade, teremos o
mesmo efeitos. Temos as falsas simplificações. PIS e Cofins são idênticos. Estamos
fazendo fusão do quê? O que distingue PIS e Cofins é a destinação. Quando faço a
fusão, abro debate sobre destinação, inclusive uma hipersensível, que é o Fundo de
Amparo ao Trabalhador [FAT], num país com 13 milhões de desempregados. E outra
é a seguridade social, cujo financiamento não está claro. Se juntar o ICMS na
mudança, piora. E juntar ICMS e ISS é uma violência contra o pacto federativo.
Valor: Fere a autonomia de Estados e municípios?
Everardo: Ninguém me venha dizer que eles podem aumentar alíquota porque não
é verdade. Poder aumentar tendo que aumentar para todos, não haverá aumento
para nenhum. Ninguém falou que por uma dessas propostas esses assuntos são da
Justiça Federal. Imagine o custo de reestruturação da Justiça.
Valor: O sr. disse que o IVA é um imposto ultrapassado. Por quê?
Everardo: Ele não lida com economia digital. Foi um imposto constituído para
tributar cadeias produtivas. Hoje nós temos redes. É um imposto que precisa do
sentido de origem e destino. Como estabelecemos isso nessa nova economia?
Hoje posso investir em outro lugar ou consumir. Com IR no
dividendo, reduzo a liberdade econômica”
Valor: Então o sr. não apoiaria nenhum dessas principais propostas atualmente em
discussão?
Everardo: Não, nenhuma. Acho que estamos olhando com um prazer de uma
retórica autodifamatória. Nós temos o pior dos mundos. Você olhou o resto do
mundo? Pega a legislação de Imposto de Renda americana. Eu fiz um resumo da
reforma de [Donald] Trump. Deu 80 páginas. A legislação tem 80 mil páginas
Valor: A reforma de Trump deixou a carga sobre renda das empresas americanas
mais baixa do que a das brasileiras?
Everardo: Depende. Não dá para medir carga olhando apenas alíquotas. Teve
empresa americana que passou a pagar mais depois, porque a reforma não fez
somente redução de alíquotas, mas criou dois impostos: um contra abuso e outro
sobre intangíveis. Esses impostos são calculados sobre alguns elementos que
constituem o lucro, como juros. Foram estabelecidas restrições à dedutibilidade dos
juros.
Valor: E a proposta de tributar dividendos e reduzir o IRPJ, em estudo pelo governo
federal?
Everardo: Se eu diminuo de um lado e aumento em outro, o que é que se quer
fazer? Aumentar, deixar igual ou diminuir? Se quer deixar igual, por que fazer essa
confusão toda?
Valor: Um argumento é que tributar dividendos estimularia investimento.
Everardo: Isso é mentira. Se distribui dividendo, está proibido reinvestir. Ao
contrário, se disser que vai tributar dividendos, a empresa está obrigada a reinvestir
e isso pode não ser a melhor opção. Hoje estou livre para reinvestir, investir em
outro negócio ou consumir. Tributando dividendos eu reduzo a liberdade
econômica. Mas, pior do que isso, trago de volta um tipo de sonegação que no Brasil
não existe mais.
Valor: A distribuição disfarçada de lucros?
Everardo: Que não existe mais no Brasil, só um caso ou outro, mas que existe no
mundo todo.
Valor: E o lucro presumido também seria afetado?
Everardo: Sim. No lucro presumido, há uma presunção. Eu digo que eu vou pagar
isso, mas fiquei sabendo que não posso fazer planejamento nem ter incentivo,
preciso pagar IR mesmo tendo prejuízo e também não posso compensar prejuízo. O
que fiz? Fiz um acordo e não discuto outra coisa. Isso está combinado também com
os dividendos. E, quando se fez as duas coisas simultaneamente, a arrecadação
cresceu excepcionalmente.
Valor: Foi benéfico à economia?
Everardo: Os contribuintes ficaram satisfeitos, porque não precisavam mais
sonegar, deu um pau na informalidade.
Valor: Os dividendos ficaram isentos quando o sr. era secretário da Receita, não?
Everardo: Sim, no período em que eu estava lá, o IR das pessoas jurídicas, com
essas e outras medidas, teve crescimento real de 117% de 1996 a 2002. Passou de
1,5% do PIB para 2,2% nesse período. Outro problema dos dividendos é que muitas empresas não podem distribuir porque há limitações da legislação tributária e
societária.
Valor: Isso quer dizer que a receita com essa tributação pode não ser tão grande
quanto se imagina?
Everardo: Sim, eu conheci estudo não oficial da Receita mostrando que a relação de
um ponto percentual no IR sobre lucro são quatro para o IR sobre dividendos. Se eu
reduzo dez pontos na alíquota de IR, teria que tributar dividendos em 40% para ficar
equilibrado.
Valor: E tributação sobre folha compensada com cobrança sobre movimentação
financeira, que o governo federal chegou a estudar. O que o sr. acha?
Everardo: O Brasil nunca quis tratar do problema da Previdência e tentava
contornar isso via elevação de alíquota. Essa alíquota sobre folha era de 8%, hoje é
de 20%. No lugar de resolver o problema da Previdência, que é chato, aumentaram
a alíquota. Aumentou-se a alíquota e o empregado virou autônomo. Aí criaram a
alíquota sobre autônomo. No passo seguinte a pessoa vai para a informalidade. E
não se percebe que o que empurra tudo isso é o problema da Previdência. É um
absurdo o modelo que há hoje de tributação sobre folha. Não tenho nenhum
preconceito contra tributação sobre transações financeiras. Administrei isso e não
tive nenhum problema. Disseram que o mundo ia acabar. Nada aconteceu. O que
eu vi foi ter redução de sonegação. Mas eu não creio que exista uma alíquota sobre
movimentação financeira que permita acabar com a tributação sobre folha.
Valor: A alíquota desse tributo seria muito alta?
Everardo: Sim, portanto, inviável. Produzir uma arrecadação de R$ 300 bilhões ao
ano, não creio. Acho que poderia haver uma compensação. O pagamento de um
tributo sobre movimentação financeira teria que ter alíquota baixa e poderia se
permitir a compensação com a contribuição previdenciária patronal. Não
substituindo ela ou parte dela, mas sim permitindo a compensação.
Valor: E o financiamento da seguridade como um todo?
Everardo: Quanto ao problema de seguridade social, a gente vai ter que inventar
novas fontes de tributação. Tem uma que acho exótica por enquanto, que é a
tributação sobre robôs, mas tem gente muito preparada falando disso, como Robert
Shiller [Nobel de Economia em 2013] e Bill Gates [fundador da Microsoft ].
Valor: O que o sr. acha, então, que precisa ser feito em termos de reforma
tributária?
Everardo: Um dos problemas centrais hoje é o lançamento do Fisco, que gera
processo administrativo, em que se gasta seis ou sete anos. Quando perco, vou para
o Judiciário, onde preciso formar garantia. No Judiciário fico uns 15 anos até o fim
das discussões. Quando termina o litígio judicial, começa a execução fiscal. Dos 80
milhões de processos judiciais, 31 milhões são de execução fiscal. A ideia, que não é
minha, mas foi desenvolvida por vários juristas, é que a parte perdedora na esfera
administrativa pode recorrer diretamente ao tribunal, o que cria sucumbência, tira a
necessidade de garantias e a execução fiscal passa a ser puramente administrativa.
Pode questionar a execução no Judiciário, mas somente questões específicas, como
abusividade. Outro problema é o estoque de precatórios. Precisamos de uma
grande clearing [câmara de compensação]. Vamos pegar e limpar os precatórios,
compensando com dívida ativa, com todos os prejuízos. Precisa ser coisa ousada,
que fique bom para todo mundo.
Valor: O sr. também fala sempre dos litígios
Everardo: Sim, o terceiro ponto é a questão dos grandes litígios. Precisamos definir
quais são eles. Alguns são óbvios: planejamento tributário abusivo, para o qual é
preciso uma nova redação para o artigo antielisão. Da forma como está cabe tudo, o
que é um espaço de insegurança monumental. A tributação do ágio também é um
assunto a ser resolvido. Fazer uma grande transação, o que traria arrecadação para
o governo e resolveria o problema para as empresas.