02/06/2022 08:00
Todas essas oportunidades exigem governos voltados ao interesse social e coletivo. Neste momento, as instituições sociopolíticas e toda a sociedade estão devastadas e os valores de uma nação destruídos. O sistema educacional sofre golpes que o levará ao retrocesso de décadas. Grande parte da elite brasileira se apequenou diante de tanta destruição social e institucional na vã esperança de uma reforma econômica em prol de si mesma ou da privatização de uma estatal. Há uma reconstrução nacional a ser conduzida em meio a grandes transformações e inovações a serem promovidas. Os desafios do próximo governo se agigantaram, mas nossos políticos e nossa elite continuam os mesmos de sempre.
Por Márcio Holland
_______________________
Nos últimos 15 anos, o mundo experimentou uma sequência de eventos, alguns ainda em vigência, que devem requerer reflexões mais profundas sobre a economia e a sociedade em que vivemos e a que desejamos deixar como legado. Me refiro à grave Crise Financeira Internacional (2008), à severa pandemia da Covid-19, desde 2020, e à preocupante Guerra na Ucrânia, que deve alterar o tabuleiro da geopolítica. As consequências socioeconômicas destes eventos vão desde aumento expressivo na pobreza e na insegurança alimentar, desemprego, crescimento econômico anêmico, desordens institucionais e ameaças à democracia.
A conjuntura macroeconômica que se projeta, com os olhares de hoje, desfavorece investimentos produtivos e mercado de trabalho, nos próximos anos. As elevadas taxas de inflação em vigor não são transitórias e o ciclo de aperto monetário promovido pelos Bancos Centrais deve persistir mais tempo. A economia vive de ciclos. De meados dos anos 1980 até a Crise Financeira de 2007/2008, o mundo experimentou a chamada “grande moderação”, com baixas taxas de inflação, boa performance em PIB e emprego e pouca volatilidade macroeconômica. Desde 2008, observa-se forte enxugamento de liquidez internacional, ciclo de taxas reais de juros negativas conforme caminhava a “zero-lower-bond monetary policy”, esforços de expansão de liquidez com as criativas medidas macroprudenciais e os afrouxamentos quantitativos (“quantitative easing”) e, mesmo assim, desafiando a poderosa Curva de Phillips, sob inflação bem abaixo dos níveis desejados.
O mundo que emerge após aqueles eventos extremos tem características marcadamente distintas do mundo anterior. As circunstâncias sobre as quais esses choques abateram o mundo são ímpares na história recente. As consequências econômicas e de geopolíticas ainda vão se desenhar, mas até onde conseguimos enxergar, serão desafiadoras para todas as nações, ricas e pobres, desenvolvidas e em desenvolvimento. O tema da “desglobalização”, pretexto para reacender as chamas do protecionismo no rastro da desarticulação prolongada nas cadeias de fornecedores globais, deve comprometer ainda mais a produtividade do trabalho no ciclo econômico que se descortina. Certamente que essas condições macroeconômicas dão espaços ao populismo e às ameaças às instituições e à democracia. O jogo da economia ganha forças com o pior da política.
Quando o céu é de brigadeiros, a festa não parece acabar. Mas, quando o mundo desaba sobre os nossos pés, a sensação é a de que o fundo do poço pode ser muito profundo. Os melhores cenários macroeconômicos, aqui e lá fora, são de projeções de crescimento anêmico, com pressões inflacionárias resilientes e, na maioria das economias, de fragilidades no mercado de trabalho. Esse ciclo econômico se amplificará com o ciclo financeiro mais apertado, conforme evoluem as taxas reais de juros positivas e, em muitos casos, elevadas, como no caso do Brasil.
É recorrente a ideia de que não devemos perder uma boa crise, como na frase original “Never let a good crisis go to waste”, creditada a Winston Churchill, supostamente dita em meados dos anos 1940, quando a Segunda Guerra Mundial se aproximava de seu fim, e relembrada mais recentemente por Rahm Emanuel, Chefe de Gabinete de Barack Obama, no contexto da Crise Financeira de 2008.
As grandes transformações que elevaram a produtividade do trabalho e projetaram o mundo para taxas sustentadas de crescimento econômico vieram com as inovações. Desde Joseph Schumpeter sabemos muito bem o poder de “destruição criativa” (“creative destruction”) das mudanças tecnológicas. Nos tempos atuais, a destruição criativa se expande para além da indústria 4.0, avança sobre o mundo dos “ventures capital” e suas empresas de tecnologia que já nascem digitais e se alastram pela agenda da descarbonização da economia e da responsabilidade social corporativa. São muitas as fontes de inovações potenciais. Todas dependem de alto nível de educação, boas regulações microeconômicas, e pesados investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Em países com precários níveis de investimentos em infraestrutura (de estradas, ferrovias, portos, aeroportos a saneamento básico e energia renovável), como no caso do Brasil, esse processo de destruição criativa ganha reforço para o crescimento sustentado.
Ou seja, da mesma forma que o mundo nos coloca tantos desafios, as oportunidades soltam aos nossos olhos. Se o mercado de petróleo, esse velho mundo do combustível fóssil, nos trás tantos choques e ainda emite vultuosos gases de efeito estufa, é hora de priorizarmos as fontes de energias renováveis. No caso do Brasil, com biomas de extraordinária biodiversidade, como o da Amazônia, amplificam-se as oportunidades advindas da bioeconomia e da biotecnologia associadas à indústria de fármacos, cosméticos, alimentos, etc. Se a desglobalização ameaça a produtividade do trabalho, doses de inovação com avanços na educação devem contrarrestar o afã protecionista. De novo, os defeitos do Brasil podem ser sua grande virtude neste novo ciclo de crescimento mundial frágil, com suas imensas e variadas oportunidades de investimentos.
Todas essas oportunidades exigem governos voltados ao interesse social e coletivo. Neste momento, as instituições sociopolíticas e toda a sociedade estão devastadas e os valores de uma nação destruídos. O sistema educacional sofre golpes que o levará ao retrocesso de décadas. Grande parte da elite brasileira se apequenou diante de tanta destruição social e institucional na vã esperança de uma reforma econômica em prol de si mesma ou da privatização de uma estatal. Há uma reconstrução nacional a ser conduzida em meio a grandes transformações e inovações a serem promovidas. Os desafios do próximo governo se agigantaram, mas nossos políticos e nossa elite continuam os mesmos de sempre.
(*) Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde coordena os “Diálogos Amazônicos” e o Programa de Pós-Graduação em Finanças e Economia (Master)