30/06/2021 11:05
Por Márcio Holland*
No último dia 24 de junho, o Governo Federal apresentou ao Congresso Nacional a chamada "segunda fase" da sua proposta de reforma tributária. Lembrando que a "primeira fase" se deu com o encaminhamento do PL nº 3.887/2020, quando foi proposta a fusão das contribuições PIS e Cofins na CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). Deu-se um segundo passo (para trás), com o primeiro ainda inerte na Câmara dos Deputados, sem grandes perspectivas para ser votado e contando com a contrariedade da maior parte dos setores da economia. Essa segunda etapa não foi diferente. Mal foi apresentada e já conta com a discordância da grande maioria dos especialistas em tributação. Aos poucos as fatias vão se desencontrando.
Já sabemos que a aprovação de uma reforma tributária no Brasil não será tarefa fácil. De acordo a literatura econômica, um bom sistema tributário precisa buscar equilibrar cinco propriedades, a saber: a eficiência econômica, a justiça fiscal, a transparência, a flexibilidade e a simplicidade administrativa. Do lado oposto do ringue, o sistema tributário brasileiro gera diversas distorções alocativas, é injusto, complexo, altamente regressivo e apresenta elevado nível de litigiosidade.
Não devemos perder de vista que qualquer proposta de reforma tributária deve respeitar os princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, como o pacto federativo e promoção da redução das desigualdades. Uma reforma tributária genuinamente ampla deve contemplar não apenas os tributos sobre o consumo, mas também sobre a renda, o patrimônio e a folha de salários. Da mesma forma, em tempos de "descarbonização" da economia, precisamos discutir mais a tributação sobre o carbono (carbon tax), visando reduzir o consumo de combustíveis fósseis e desestimular as atividades mais emissões de gases causadores do efeito estufa.
Feita essa digressão sobre princípios, o conjunto da obra do governo federal, formado pelas duas primeiras fases da proposta de reforma, não é nada animador. Trata-se de um grande passo atrás na agenda de reforma tributária. A notícia boa é que não estamos mais discutindo a PEC 45/2019, que continha mais aventuras do que ideias sólidas. O parecer do relator Deputado Aguinaldo Ribeiro caminhou para uma boa sugestão de reforma na tributação sobre o consumo, em especial, sem as peripécias de uma fase de transição e com faseamentos, respeitando cláusulas pétreas da Constituição Federal. Contudo, em tributação, detalhes contam muito; e eles estão presentes nas leis que regulamentam emendas constitucionais. Assim, o desafio seria converter as boas ideias daquele parecer em lei complementar e demais regulamentações infralegais. Mas, pelo menos, o parecer do Deputado Ribeiro tirou da sala o elefante branco da PEC 45/2019. Movimento similar deve acontecer com a colcha de retalhos da PEC 110/2019.
No caso da primeira fase da proposta do Governo Federal, já sabemos que a alíquotas de 12% para a CBS, uniforme para todos os setores, é um exagero para o setor de serviços e deve estar superestimada para a indústria. Da mesma forma, com as propostas da segunda fase, prevalecem mais ideias populistas, oportunistas e pouco eficazes do que boas regras de tributação sobre a renda. Por exemplo, tem-se a proposta de atualização da tabela do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), elevando a faixa de isenção dos atuais até R$1.903,98 para até R$ 2.500,00. Trata-se de medida oportunista para ano de eleições presidenciais.
Como contrapartida, estabelece-se um teto de R$ 40.000,00 para o desconto simplificado de 20%, no ajuste anual do IRPF, o que deve implicar aumento da carga tributária da classe média brasileira. Como muito bem destacou o professor Fernando Scaff, da USP, em artigo no site CONJUR ["O projeto de remendo no Imposto de Renda e seu populismo eleitoral"], o governo dá com uma mão e tira com a outra, mas fica a impressão falsa de que melhorou a tributação sobre a renda de quem ganha menos.
O governo propõe tributar dividendos, compensando parcialmente - repito, apenas parcialmente - com redução na alíquota do Imposto de Renda Para Pessoa Jurídica (IRPJ). O resultado para os investimentos em setores reais da economia deve ser de maior carga tributária. Há riscos consideráveis de estímulos à ineficiência econômica à medida que os investidores serão forçados a tomar decisões second best como a de reinvestimento na própria empresa, mesmo que essa não seja a melhor decisão a tomar, em detrimento da decisão de investir em outras empresas e setores econômicos. Mais uma vez, aqui também a proposta aumenta a carga tributária dos investimentos produtivos.
Em balanço geral, comparando a tributação sobre os investimentos produtivos com os investimentos financeiros, a proposta acaba por tributar mais os primeiros do que os segundos, o que causa desconforto social. Por que tributar os investimentos financeiros em 15% e os resultados dos investimentos reais em 43%? Por que acabou com a tributação escalonada em função da duração da aplicação, no caso dos investimentos financeiros, em um país que precisa estimular o alongamento de passivos e ativos? Por que não estendeu a tributação sobre instrumentos financeiros como a LCI e a LCA?
A segunda fase é um retrocesso na agenda de reforma tributária. Se a primeira fatia da reforma, com o advento da CBS, contou com divergências setoriais, temos agora mais uma fase de discórdia, para deleite dos opositores de uma reforma tributária. Tenho até a sensação de que o governo está caprichando para acumular cuidadosamente adversários da reforma tributária, para não ter nenhuma reforma aprovada.
Melhor parece ser mesmo esperar pelo novo governo para que o país tenha condições políticas e sociais para aprovar uma reforma tributária verdadeiramente ampla.
(*) Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde coordena os "Diálogos Amazônicos" e o Programa de Pós-Graduação em Finanças e Economia (Master) e escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente às quartas-feiras