14/07/2021 13:33
Por Márcio Holland*
Não é tarefa nada trivial falarmos do futuro quando estamos mergulhados em uma pandemia. O que sabemos até aqui é que o mundo pós-pandêmico que se avizinha é caracterizado por altas taxas de desemprego, aumento das desigualdades sociais, em todas as suas dimensões, elevado nível estrutural de endividamento público, baixo nível de crescimento potencial, fechamento de grande número de pequenas e médias empresas e riscos não desprezíveis de revoltas socais e desarticulações das instituições políticas.
O mundo que conseguimos avistar até aqui para as próximas décadas tem riscos climáticos extremos - risco do "cisne verde", na linguagem proposta pelo BIS (Banco Internacional de Compensações, o banco dos bancos centrais)-, população envelhecida e sociedade absurdamente desigual. A economia digital cuidará de apartar ainda mais os abastados dos desfavorecidos.
Um relatório preparado por dois economistas de reputação internacional, Oliver Blanchard e Jean Tirole, lança luzes para nossas reflexões. O documento contou com contribuições de outros destacados economistas, de diferentes nacionalidades e orientações teóricas, como Dani Rodrik, Paul Krugman, Lawrence Summers, Peter Diamond, entre outros. Eles foram provocados pelo presidente da França, Emmanuel Macron, a pensarem sobre os grandes desafios para longo prazo.
Com o título "Major Future Economic Challanges", publicado em junho deste ano, Blanchard e Tirole optaram por focar em três grandes desafios estruturais para o longo prazo, a saber: mudança climática, demografia e desigualdade econômica. Não poderiam ter sidos mais sensatos na escolha dos desafios. O relatório foi escrito com a perspectiva da França, mas tem lições para outras economias europeias, e mesmo para o Brasil.
Sem pretensão de tentar resumir o relatório neste curto espaço, acredito que os três principais desafios econômicos brasileiros são os mesmos apontados por Blanchard e Tirole. Primeiro, o Brasil tem grande contribuição a dar na agenda mundial de redução do aquecimento global, por contar com extraordinária sociobiodiversidade e, em particular, pelo bioma Amazônia, ocupando metade do território nacional. A Amazônia Brasileira contém 120 bilhões de toneladas de carbono em suas árvores; boas políticas ambientais não apenas permitem desenvolvimento socioeconômico na região como, ao ajudar a mitigar o aquecimento global, melhora a imagem do Brasil perante consumidores e investidores estrangeiros. A Amazônia pode ser nosso "bilhete premiado" na busca por motores de crescimento sustentável de longo prazo.
Segundo, não muito distante de hoje, em 2040, a taxa de crescimento da população brasileira passará a ser negativa, e mais de um terço da população com 60 anos de idade ou mais. Grandes transformações demográficas precisam ser planejadas com antecedência. Será essencial que o País passe por mais uma rodada de reforma do sistema previdenciário, procurando torná-lo mais justo e mais transparente. No topo da lista dos principais gastos públicos tem-se, com destaque, as despesas previdenciárias.
Terceiro, se o Brasil já era um país perversamente desigual, com a pandemia, o fosso entre ricos e pobres se ampliou ainda mais. A recuperação cíclica deve demorar a chegar no mercado de trabalho e não será suficiente para a volta ao caminho da redução das desigualdades. O relatório organizado por Blanchard e Tirole dá ênfase à necessidade de combater diversas dimensões da desigualdade. Os autores abrem a sessão sobre o tema falando da necessidade de dar acesso a bons empregos e à qualidade da vida laboral. Não há sociedade organizada se não há acesso a emprego de qualidade aos trabalhadores. Políticas de geração de emprego devem ser de grande importância no mundo pós-pandêmico.
Aqui vale o registro de que o Brasil precisa discutir urgentemente reforma do sistema educacional. A educação de qualidade igual para todos, ricos e pobres, é a forma mais genuína de reduzir desigualdades. Talvez essa seja a mais importante de todas as reformas estruturais, no nosso caso, até pela baixa qualidade educacional, em especial das famílias mais pobres. Sem ela, nossos trabalhadores não estarão preparados para a nova economia que vem se desenhando e para se posicionarem em empresas de tecnologia. A desigualdade se perpetuará.
Assim, antes de debatermos sobre quem será o protagonista da reforma tributária, ou sobre quando devemos aprovar a reforma administrativa, por mero ativismo político, por exemplo, precisamos discutir sobre qual deve ser a estrutura e dinâmica dos gastos públicos e sobre como financiar tais gastos, de modo a obtermos equilíbrio fiscal sustentado. Veremos, muito provavelmente, que precisaremos, antes de tudo, voltar a discutir a reforma previdenciária, além da revisão de diversos gastos públicos pouco eficazes. Distanciando da autoridade fiscal de plantão, típica do discurso fácil doméstico, precisamos expandir gastos públicos para investimentos em infraestrutura e para alcançar os menos favorecidos, com políticas públicas voltadas para acesso à educação e saúde de qualidade, moradia adequada, com acesso a água potável, saneamento e conectividade, mobilidade urbana apropriada aos trabalhadores, entre outros. As políticas sociais devem mandatoriamente ser estendidas para além de programas de transferências de rendas, como o Bolsa Família. Será preciso abrir espaço fiscal para esse público, revendo gastos e tributando os mais ricos.
Por conseguinte, é fundamental que qualquer proposta de reforma tributária vise não apenas aumentar a eficiência econômica, mas igualmente importante, reduzir, de modo considerável, a regressividade do sistema atual. É importante tributar as atividades econômicas emissoras de gases de efeito estufa o quanto necessário para torná-las economicamente proibitivas. Talvez o Brasil seja mesmo um país abençoado por Deus, pois até aqui nenhuma proposta de reforma tributária seguiu adiante. A mais aclamada delas, a PEC 45/2019, contou com incondicional apoio da elite brasileira, que financiou um centro de estudos para a defender arduamente. Tratou-se de uma proposta viesada exclusivamente na busca pela eficiência econômica. Negligenciaram outras funções essenciais de um sistema tributário, como o da justiça fiscal. Ganhamos a chance de rediscutirmos o tema e revermos o caminho que desejamos trilhar como nação. Discussões sobre renda mínima universal e sobre alguma forma de imposto de renda negativo, combinado com alíquota adicional acima de 30% de imposto de renda para pessoa física, foram atropeladas por oportunismo político e por vaidades pessoais.
Não será com improvisos e propostas atabalhoadas que o Brasil se soltará das armadilhas do crescimento fraco e da desigualdade social. Precisamos convergir sobre os desafios prioritários para conduzirmos a agenda de reformas econômicas alinhadas a superá-los. Cada medida, cada proposta e cada ato de governo precisa ser avaliado à luz destes desafios. Parece até que Blanchard e Tirole ouviram pedidos de um futuro presidente da República do Brasil sensato e acertaram, com lucidez e precisão, no que o País tem a enfrentar pela frente.
(*) Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da FGV, onde coordena os "Diálogos Amazônicos" e o Programa de Pós-Graduação em Finanças e Economia (Master). Escreve artigos para o Broadcast quinzenalmente às quartas-feiras.
Fonte: Brasil Amazônia Agora