07/04/2022 10:10
Mas, as discórdias com a PEC 110/2019 não param aqui. É preciso alertar a sociedade não somente sobre suas virtudes, mas também seus impactos negativos. Primeiro, como já citado acima, há um possível impacto sobre o nível dos preços, em especial nos setores de educação, saúde, comunicação e informação, e alimentos. Segundo, há um imenso vazio de discussão no Brasil sobre a tributação da renda. Por que não propor, no bojo da agenda legislativa, alíquota adicional sobre o imposto de renda de pessoa física de, digamos, 35%, além das alíquotas atuais? Por que tanto silêncio sobre isso no Brasil?
Por Márcio Holland
_______________________
Há razoável chance da proposta de reforma tributária em discussão no Senado Federal estar sendo aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) quando você estiver lendo essa coluna. Não é trivial conduzir esse tema com tantos prós e contras, e a aprovação de um novo diploma jurídico neste front é digno de condecoração de seus feitores. Como a PEC 110 já recebeu 252 emendas, sendo que 68 deles já foram total ou parcialmente acatadas, não é possível antever o que efetivamente estaria sendo aprovado, nem sobre seus os ganhos efetivos por setores, muito menos seus impactos econômicos diversos.
Não há dúvidas de que o atual estado da PEC 110/2019, conforme relatório de autoria do senador Roberto Rocha, representa um grande avanço perante, por exemplo, a PEC 45/2019, de iniciativa da Câmara dos Deputados, ou mesmo perante o PL 3.887/2020, de autoria do governo federal. Em especial, o relatório propõe o chamado IVA dual. Ou seja, um IVA Federal, que acolheria os tributos federais PIS e COFINS e um IVA estadual/municipal, que abrangeria o ICMS e o ISS. Caberia a outra etapa, a transformação do IPI em um imposto seletivo. Essa iniciativa mitiga, em grande parte, os riscos institucionais de ferir o pacto federativo, mesmo mantendo a discordância de grande parte dos prefeitos que temem perda de arrecadação, em relação à arrecadação atual com o ISS.
O tema segue em disputa setorial. De um lado, a indústria de transformação, em geral, deve ter ganhos com a proposta, uma vez que ela permite crédito financeiro integral e devolução tempestiva deste crédito, evitando o absurdo da tributação sobre investimentos e exportações de produtos industrializados. No estado atual das coisas, a carga tributária sobre a indústria é superior ao seu peso sobre o valor adicional da economia. Ou seja, a indústria de transformação paga mais tributos do que deveria. Vale advertir, contudo, para o fato de que não sabemos, por exemplo, qual será o tamanho final das alíquotas de IVA Federal e IVA Estadual/Municipal nos preços finais aos consumidores dos produtos industrializados. Há fortes indícios de viés de alta em preços, dado que as alíquotas combinadas do IVA podem ultrapassar em muito 20%, se tornando um dos maiores IVAs do mundo.
Se assim o for, resultaria em uma reforma tributária que inexoravelmente aumentaria a regressividade do sistema tributário brasileiro. Há um estudo de leitura indispensável sobre a tributação por classes de renda familiar que pode ajudar muito a entender e simular futuras reformas. Trata-se do texto para discussão do Banco Mundial com o título “Indirect Tax Incidence in Brazil: Assessing the Distributional Effects of Potential Tax Reforms”, de Gabriel Lara Ibarra, Rafael Macedo Rubião e Eduardo Fleury.
Com análises a partir da POF 2017/2018, os autores mostram que as famílias mais pobres gastam 21% de suas rendas com tributos, enquanto para as famílias mais ricas a carga tributária é de 12%. Conforme hipóteses, o estudo aponta para redução de regressividade no caso da adoção de um IVA de 26,9%, em comparação com o modelo atual. Contudo, são simulações que dependem de muitas hipóteses. Haveria aumento nas despesas por alimentos, em educação e em saúde, em todas as classes de renda, mas mais sobre os mais ricos. Não quer dizer que não haveria aumento de preços para as famílias mais pobres. É apenas uma questão relativa. Caberia, ainda, avaliar os impactos com o fim da desoneração da cesta básica, dado que esse será objeto da Lei Complementar.
Se ganha a indústria de transformação, perdem os setores de serviços e da agropecuária, dado que esses acabam ficando com as alíquotas majoradas em relação à sua carga tributária atual e sem muito direito a créditos tributários. De um lado, há a alegação de que eles são “subtributados”, ou com amplas isenções fiscais, como no caso da agropecuária. Mas, de outro lado, não há razões para, repentinamente, os sobretributar. Talvez aqui fosse o caso de pensarmos em duas alíquotas, uma “cheia” para o setor industrial e outra “parcial” para os demais setores da economia, em particular, agricultura e serviços e alguma convergência no tempo. Com isso, esses setores teriam tempo suficiente para promover acomodações em seus modelos de negócios.
Mas, as discórdias com a PEC 110/2019 não param aqui. É preciso alertar a sociedade não somente sobre suas virtudes, mas também seus impactos negativos. Primeiro, como já citado acima, há um possível impacto sobre o nível dos preços, em especial nos setores de educação, saúde, comunicação e informação, e alimentos. Segundo, há um imenso vazio de discussão no Brasil sobre a tributação da renda. Por que não propor, no bojo da agenda legislativa, alíquota adicional sobre o imposto de renda de pessoa física de, digamos, 35%, além das alíquotas atuais? Por que tanto silêncio sobre isso no Brasil? Fala-se em reforma tributária “ampla”, mas deseja-se reformar apenas a tributação sobre o consumo. Por que não envolver também a tributação sobre a renda e sobre patrimônio, já neste momento, de modo a buscar compensações para potenciais perdas de curto prazo com possível alíquota reduzida para alguns setores? Quando considerada de modo integrado, uma reforma tributária verdadeiramente ampla permite esse tipo de compensação transversal aos tipos de tributos.
Por fim, a aprovação da PEC 110/2019 na CCJ sem a devida apreciação da proposta de Lei Complementar pode ser mais ruído do que realidade e isso pode gerar mais incertezas sobre a economia. Sabemos muito bem que o Brasil é campeão em aprovar leis que não são aplicadas. Temos, até hoje, diversos artigos da Constituição Federal não regulamentados. Esse pode ser o destino de mais essa iniciativa do Senado Federal.
Ou seja, podemos aprovar mais uma emenda constitucional que não entrega o que promete, ou simplesmente que irá se tornar mais motivo de discórdia nacional em seus próximos capítulos.