16/12/2024 09:28
Principal polo da região Norte do país, Manaus é marcada por dois períodos históricos: os ciclos da O processo de industrialização na região amazônica se deu, principalmente, pelo estabelecimento de uma ZFM (Zona Franca de Manaus), nos tempos do regime militar, para “armazenamento ou depósito, guarda, conservação, beneficiamento e retirada de mercadorias, artigos e produtos de qualquer natureza, provenientes do estrangeiro e destinados ao consumo interno da Amazônia, como dos países interessados, limítrofes do Brasil ou que sejam banhados por águas tributárias do rio Amazonas”, como diz a Lei 3.173, de 6 de junho de 1957, assinada pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Dez anos depois, o marechal Humberto Castello Branco, o primeiro a comandar o país durante a ditadura militar, editou o texto e alterou a natureza do local para um centro industrial, agropecuário e comercial.
borracha, que ocorreram entre 1880 e 1910, e o da industrialização, que se iniciou na segunda metade do século XX. O primeiro atraiu milhares de trabalhadores para a extração de látex da hevea brasiliensis, árvore popularmente conhecida como seringueira. Já o segundo transformou a cidade no centro da indústria brasileira, com o Polo Industrial de Manaus concentrando quase 80% do PIB (Produto Interno Bruto) do Amazonas. E com o debate da regulamentação da reforma tributária travado pelo Congresso Nacional, a Zona Franca de Manaus ganha ainda mais relevância diante da viabilidade de um modelo econômico sustentável. O futuro manauara e a sua capacidade de manutenção de crescimento dependerão da adaptação ao novo cenário tributário do país.
Em 1970, São Paulo respondia por 41% do PIB nacional, mas foi perdendo força e, em 2010, batia os 33%. Minas Gerais, o segundo colocado, se manteve ao longo do tempo, enquanto que o terceiro, Rio Grande do Sul, teve a sua participação diminuída no contexto geral do país. Amazonas, onde foi estruturado um dos maiores parques industriais brasileiros durante esse período, saltou cinco posições e viu a participação no PIB do Brasil crescer de 0,3% para 1,6%. Se na data inicial desses cálculos, a população amazonense era de 715 mil pessoas, no final era de 1,4 milhão. Atualmente, são 3,4 milhões de habitantes que se dividem em diversos setores, com participação massiva da indústria, nacional e internacional.
De acordo com o decreto, a zona manauara foi classificada como área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, “estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia” o movimento de desenvolvimento em meio à maior floresta tropical em pé do país, em “face dos fatores locais e da grande distância, a que se encontram, os centros consumidores de seus produtos”. Na época, vigoravam apenas dois impostos: de circulação de mercadorias, desde que não tivessem qualquer parcela de matéria prima ou parte componente importada, e de importação sobre as matérias primas ou partes componentes importadas com redução percentual da alíquota de importação igual ao percentual do valor adicionado no processo de industrialização local em relação ao custo total da mercadoria.
A ZFM passou por diversas transformações desde sua criação. Entre 1967 e 1975, o foco estava na indústria de montagem. No período de 1975 a 1991, destacou-se o aumento da nacionalização dos insumos produzidos na região, acompanhado dos incentivos fiscais, o que resultou em um maior valor agregado — atualmente em 82,6%. A partir de 1992, foi a vez do processo produtivo básico, que consiste nas etapas fabris mínimas necessárias do produto, até chegar em 1996, com o advento da inclusão digital e informática. Atualmente, a área compreende um total de 10 mil quilômetros quadrados, abrangendo os municípios de Manaus, Presidente Figueiredo e Rio Preto da Eva.
O PIM (Polo Industrial de Manaus), como também é chamado, é um dos espaços industriais mais modernos do país, com cerca de 500 indústrias em diversas áreas, como eletrodomésticos, duas rodas, mecânica, naval e termoplástico. Os índices de produção e faturamento, cada vez mais crescentes, estão na casa dos R$ 120 bilhões, com geração de milhares de empregos, entre diretos e indiretos. Os dados apontam para uma distribuição dos produtos de forma majoritária para o mercado brasileiro, mas uma pequena parcela (5%) é exportada para outras regiões, como Europa e Estados Unidos.
A administradora do polo industrial, a Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus), informou que o faturamento da área nos sete primeiros meses deste ano chegou a R$ 114 bilhões, um crescimento de 13,97% em relação ao mesmo intervalo de 2023. Em julho, eram 122.670 trabalhadores diretos. O salário médio pago pelas indústrias manauaras é de R$ 2.900, contra R$ 2.700 da média nacional. A criação de um espaço voltado para o desenvolvimento fez com que praticamente dobrasse a renda per capita do estado, hoje em R$ 45 mil.
Entre os exemplos das indústrias que atuam no polo industrial estão a brasileira Mondial e a japonesa Honda. A primeira produz, por exemplo, cerca de 3.500 micro-ondas por dia, enquanto a segunda entrega o ciclo final de uma motocicleta a cada 19 segundos. Os dois centros industriais abrigam enormes plantas na capital amazonense, sendo que a brasileira tem uma fábrica de quase 50 mil m², e a japonesa tem um parque industrial de mais de 260 mil m² e a operação mais verticalizada do mundo, que pouco depende de fornecedores externos. Além disso, as duas fábricas contam com modernos equipamentos e máquinas e empregam milhares de trabalhadores, que cumprem rotinas de trabalho, treinamentos e cursos de aprimoramento e de segurança. No momento da visita da reportagem ao local, era possível ver a troca de turnos e a fila de trabalhadores à espera de bater o ponto.
Os manauaras contam também com o Centro de Bionegócios da Amazônia, pensado para impulsionar o desenvolvimento tecnológico a partir do aproveitamento sustentável dos recursos naturais da floresta. A região amazônica abriga uma cesta gigante de oportunidades. Nesse sentido, pesquisadores acadêmicos desenvolvem diversos produtos. Um deles vem da planta curauá, prima do abacaxi. A partir dela, se produz fibra, que pode substituir o plástico. O objeto, alvo de estudos e plantações no local, pode pôr fim a um tipo de poluição que ameaça as vidas humana e ambiental. Outros exemplos pesquisados são a castanha do Brasil (que pode vir a ser uma madeira semelhante ao MDF), a fibra da banana (que pode vir a ser uma capa de proteção para celular), e celuloses bacterianas (que podem se transformar em uma espécie de couro vegano).
Essa pungência amazônica esteve e de certa forma ainda está sob pressão durante o debate que está sendo travado há mais de 3.000 quilômetros dali, em Brasília: a regulamentação da reforma tributária. Negociada por quatro décadas, a Emenda Constitucional 132 foi finalmente promulgada pelo Congresso Nacional em 2023. A proposta, que muda o sistema de tributos no país, tem potencial de fazer com que o PIB do Brasil cresça de 12% a 20% em 15 anos. Na prática, o texto substitui cinco impostos por um IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) Dual de padrão internacional, que é formado pelo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e pela CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços).
Eles substituirão PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS. A reforma cria, ainda, o Imposto Seletivo, de caráter regulatório e para desestimular bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Ao mesmo tempo, a reforma tributária prevê alíquota zero ou reduzida para determinados objetos, como cesta básica, insumos e produção rurais, medicamentos, produtos de higiene e serviços de educação.
A reforma tributária garantiu certas vantagens para a Zona Franca de Manaus, a exemplo da continuidade do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) sobre os produtos concorrentes aos fabricados no local, e a criação do Fundo de Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá. A manutenção desse diferencial competitivo da ZFM estava prevista na Emenda Constitucional, enquanto novas leis vão estabelecer os mecanismos para assegurar esse cenário. O polo industrial, aliás, teve o prazo de funcionamento prorrogado até 2073, o que permite a manutenção de benefícios tributários.
No entanto, setores que atuam na defesa da ZFM cobram aprimoramentos na regulamentação da reforma tributária, em análise pelos congressistas. No dia 9 de dezembro, o relator da matéria no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), apresentou o relatório dele sobre a proposta, e em 12 de dezembro o texto foi aprovado no plenário da Casa. Entre os principais pontos estão os tratamentos diferenciados para uma série de produtos e isenções tributárias, como alíquota zero para carnes, e a possibilidade de “cashback” a famílias de baixa renda de parte dos valores pagos com contas de telefone e internet. Para a indústria da ZFM, a proposta mantém a competitividade da região.
Um dos pontos de atenção era para que não houvesse incidência da CBS nas ações internas de comércio. A indústria também tinha cautela com a questão do crédito presumido, uma espécie de crédito com a função de reduzir o imposto cobrado sobre as operações praticadas. Nesse caso, o polo queria a inclusão de outros produtos, além de bens de informática, que detêm 100% de crédito presumido do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), e dos bens com níveis de crédito presumido diferenciados, em razão dos adicionais da regionalização previstos na legislação amazonense. No novo relatório, a questão foi sanada.
O setor também defendia a supressão da vedação do crédito presumido nas operações internas da ZFM em relação ao valor adicionado nas operações de retorno de industrialização por encomenda, assim como a regra da extinção dos créditos no prazo de seis meses para o polo industrial. O argumento é de que a lei de incentivos do Amazonas prevê diferentes destinações ao bem, podendo ser classificado como de capital, intermediário de consumo final ou de informática, sendo que cada um recebe um tratamento tributário específico ou nível diferenciado de crédito presumido. O relator, em seu novo texto, previu que, no futuro, haverá a vedação dessa modalidade.
O advogado tributarista e membro do CIEAM (Conselho Superior do Centro das Indústrias do Estado do Amazonas) Jeanete Portela comemora as alterações feitas no relatório da regulamentação e conta que a reforma tributária superou diversos desafios, como a pecha de o país ter um dos sistemas de impostos mais complexos do mundo, que trava a competitividade e reonera os setores produtivos.
“Estamos no ponto de regulamentação, que significa, na prática, a operacionalização desse sistema já definido. É um momento desafiador. Voltando para a ZFM, a questão tributária sempre foi um item muito relevante. Para atrair as indústrias, vem a tributação diferenciada nesse emaranhado de impostos. Então, existem tratamentos diferenciados no sistema atual. A competividade está estabelecida. Veja o desafio que, em um sistema mais enxuto, mais moderno, é ter essa característica assegurada. O desafio é, na regulamentação, ter o desenho operacional adequado para que isso seja assegurado”, diz Portela.
“Os principais pontos para a ZFM foram observados, e o texto, de fato, busca regularizar a competitividade nos termos atuais. Pelo texto, a Zona Franca tem a competitividade assegurada. A nossa expectativa em relação à análise que será feita pela Câmara dos Deputados é de manutenção desses pontos. Claro, é um processo político, mas o próprio relator havia dito que o presidente Arthur Lira sinalizou que esses trechos vão continuar na proposta. Nós acreditamos que há uma grande incompreensão de determinados segmentos em relação ao tratamento diferenciado da ZFM, que está garantido constitucionalmente. Estamos otimistas na aprovação pelos deputados e que a reforma possa ser positiva para todo o país”, acrescenta o advogado.
Ainda no contexto tributário e de qualidade dos itens produzidos na ZFM, a área manauara apresenta diversas virtuosidades, na visão do professor da Universidade Federal do Amazonas Augusto Cesar Barreto Rocha, que destaca que a vocação do estado é a indústria. Em estudo, ele apontou que a economia amazonense é responsável por quase 30% do Valor Bruto de Produção, 37% do Consumo Intermediário e 21% do Valor Adicionado da região Norte.
“A característica é o elevado consumo nas etapas internas de produção. Ter uma atividade econômica baseada em cadeias produtivas densas e sofisticadas da indústria de transformação permite ao Amazonas aumentar frequência e base de cálculo das operações geradoras dos impostos sobre produção”, diz o documento.
De acordo com o professor, em termos de valor adicionado bruto, no Amazonas a participação da indústria de transformação é de 27,6%, enquanto que a média brasileira é de 13,9%, e da região Sudeste, a mais industrializada do país, de 15%. O polo industrial de Manaus mantém os seus trabalhadores no emprego mais tempo (em média 25 meses) que no restante do país (17 meses), o que mostra outra virtude da ZFM. E isso se dá em um cenário de embates financeiros. Segundo o setor privado, a União retira do estado, por ano, R$ 17 bilhões em tributos, na medida em que Amazonas retira R$ 4,7 bilhões da indústria em Manaus. Os argumentos recaem, então, sobre a manutenção da competitividade do local no contexto da regulamentação da reforma tributária.
Há certo otimismo do setor industrial com a proposta, e a expectativa é de manutenção dos tributos que asseguram as virtuosidades amazônicas. Embora a região manauara tenha enfrentado crises econômicas durante os dois ciclos da borracha, o cenário atual aponta para um futuro, em grande parte já presente, não proveniente de recursos naturais, mas, sim, pela indústria. Dessa forma, os frutos da transformação industrial devem seguir como o principal motor de desenvolvimento para Manaus e para a maior floresta tropical do mundo, de soberania brasileira. E o desafio é manter o crescimento sustentável na adaptação ao novo cenário tributário do país.
*O repórter viajou a convite do CIEAM (Centro da Indústria do Estado do Amazonas).
Fonte: R7