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ROBERTA JANSEN 11 ABRIL 2024 | 6min de leitura
O Ministério dos Transportes deve concluir até o fim deste mês a proposta para a pavimentação da Rodovia BR-319, que corta a área mais bem preservada da Floresta Amazônica, ligando Porto Velho a Manaus. Ambientalistas dizem que o asfaltamento da estrada pode aumentar a destruição do bioma, impedindo o País de cumprir a meta de desmatamento zero até 2030, enquanto defensores do projeto ressaltam a importância da ligação terrestre com um “modelo contemporâneo”.
- Com 877,4 quilômetros de extensão, a BR-319 corta a Amazônia diagonalmente, ligando a capital de Rondônia à do Amazonas.
- A estrada margeia ou atravessa 42 unidades de conservação ambiental, 69 reservas indígenas e mais de seis milhões de hectares de terras públicas.
- É a única ligação por terra de Manaus para o restante do País.
Atualmente, apenas cerca de 200 quilômetros (no início e no fim da via) são asfaltados. O longo trecho central da estrada que passa por dentro da floresta é de terra batida e costuma ficar intransitável no período de chuva.
A pavimentação, segundo os ambientalistas, facilitaria o acesso de grileiros, madeireiros e mineradores a uma região praticamente intocada da mata.
Estudo publicado na Environmental Monitoring and Assessment, assinado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), revela que a reconstrução da BR-319 aumentaria o desmatamento ao longo da rodovia e também nas estradas vicinais conectadas à BR-319 em 60% até 2100, em relação ao desmatamento no cenário projetado sem a reconstrução.
“Trata-se de região crítica para a preservação da floresta e, ao mesmo tempo, vulnerável, com muitas terras públicas não destinadas”, explicou ao Estadão o cientista Philip Martin Fearnside, do Inpa, principal autor do trabalho.
“Os grileiros estão esperando a construção dessa estrada, fazem grande lobby por isso, é importante termos um modelo matemático que mostre o enorme impacto da obra”, disse o biólogo, que fez parte do painel da Organização das Nações Unidas (ONU) que ganhou o Nobel em 2007 por alertar sobre a crise climática.
“A estrada pavimentada vai servir para levar todos os desmatadores hoje concentrados no Arco do Desmatamento a migrar para o interior da floresta”, afirmou.
Nota técnica assinada por Juliana Leroy e Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e hoje na Diretoria de Controle do Desmatamento e Queimadas do Ministério do Meio Ambiente, indica um cenário semelhante.
De acordo com as projeções dos pesquisadores, o asfaltamento da rodovia levaria, até 2050, a um “desmatamento acumulado de 170 mil quilômetros quadrados, quatro vezes mais do que o projetado com a média história da região”, ou seja, sem o asfaltamento.
Do ponto de vista climático, um aumento do desmate da Amazônia dessas proporções teria impacto significativo nos chamados “rios voadores” – imensos volumes de vapor de água que vêm do Oceano Atlântico, ganham corpo na Amazônia e seguem para os Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo e, algumas vezes, até o Sul.
“Não temos mais margem de segurança para perder água da Amazônia nos rios voadores que são essenciais para o abastecimento de água das grandes cidades do Brasil e também do agronegócio”, disse Fernside. “Esse é o último lugar onde a água é reciclada pela floresta e levada para o resto do País.”
Outro problema levantado pelos especialistas é o risco do crescimento das doenças infecciosas transmitidas dos animais para humanos, as zoonoses. Áreas de floresta fechada costumam guardar patógenos com os quais os seres humanos jamais tiveram contato, com o risco de deflagração de novas epidemias.
Acesso
Professor de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Augusto Rocha diz que a discussão é conduzida de forma superficial e polarizada. Ele lembra que a rodovia é o único acesso terrestre a Manaus e que a ausência do Estado em uma região intocada também abre espaço para atividades ilegais.
“Não se trata de fazer uma rodovia a qualquer custo, cometendo os mesmos erros cometidos na Transamazônica, sem salvaguardas ambientais. Mas tampouco devemos deixar a floresta completamente intocada. Temos de enfrentar o assunto tecnicamente”, afirma.
“Precisamos de um modelo contemporâneo de rodovia, precisamos mostrar para o mundo como fazer uma rodovia sustentável. Temos conhecimento técnico e tecnologia para isso. É inconcebível fazer uma estrada como fazíamos nos anos 1970, mas também é inconcebível não desenvolver a região. Precisamos respeitar a floresta, mas usar os seus recursos.”
Estrada-parque
O Ministério dos Transportes informou que pasta está trabalhando com o conceito de estrada-parque, o que garantiria a preservação da floresta e das comunidades locais.
- A via teria barreiras laterais de até quatro metros de altura, com poucos acessos à mata, e apenas com passagens para os animais.
- Além disso, teria pelo menos três portais de monitoramento.
- Outras medidas estão sendo estudadas, como a proibição de trânsito de caminhões levando madeira não certificada, por exemplo, ou maquinário pesado usada para o desmatamento.
“A pauta ambiental é essencial, mas a realidade da região também”, disse o subsecretário de sustentabilidade da pasta, Cloves Benevides.
“A realidade da região hoje é a necessidade de ligação entre esses dois Estados e o fato de que a estrada, mesmo sem asfalto, já tem um fluxo expressivo de veículos. O desmatamento é algo que já está acontecendo.”
Segundo Benevides, é preciso ter uma governança funcional para toda a região da estrada.“Sem essa governança, os problemas tendem a aumentar de qualquer maneira”, afirmou.
“Esse é um empreendimento único, que precisa nascer com todas as garantias de sustentabilidade e monitoramento de forma integrada.”
A obra precisa do sinal verde do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para sair do papel. “Eu não sou contra nem a favor da estrada, não entro nesse mérito”, afirmou o secretário de controle de desmatamento do MMA, André Lima.
“Mas qualquer obra de infraestrutura, seja da iniciativa privada ou do governo, precisa estar alinhada com a meta do desmatamento zero (até 2030) colocada pelo presidente da república. Essa é a discussão. Seja lá qual for a obra, precisamos saber se as ações previstas são convergentes com essa meta.”
Um estudo divulgado na semana passada pela ONG Transparência Internacional indicou ainda um outro problema: pouca transparência na execução de contratos e riscos socioambientais da pavimentação da BR-319.
Foram identificadas ausência de consultas livres, prévias e informadas à população impactada; fragilidade de informações sobre a execução dos contratos; e falta de informação ampla sobre o licenciamento ambiental.
A coordenadora da Federação e Organização das Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), Sandra Batista do Amaral, confirmou em entrevista à agência de notícias Amazônia Real que os indígenas não foram consultados sobre o projeto da BR-319.
A consulta prévia é um dos direitos fundamentais dos povos indígenas, de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Nós já fizemos uma primeira reunião com a Funai, cujo objetivo era determinar quais são as terras indígenas afetadas”, contou Cloves Benevides. “Na próxima etapa, vamos ouvi-los certamente, esse é um compromisso previsto no projeto.”
Fonte: Estadão